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Apetites

Fome é fome, amor é amor, dor é dor. A coita amorosa do bardo medieval não é mais profunda ou valorosa que a do maninho que balbucia um rap romântico. Pode certamente ter mais candura e ser mais elegante, com seu vocabulário raro e sua música de alaúde. Mas aí é forma, não conteúdo. E os impulsos básicos, os sentimentos mais elementares, estes se equivalem. Feita esta introdução meio prolixa, eu mudo de parágrafo e acrescento: existem diferenças entre a fome fisiológica (a do vazio no estômago) e a fome do apetite, que mexe com desejos e fantasias sensoriais. A primeira quer algo concreto, é reação vital. A outra é movida também por instintos, mas primordialmente por vontades específicas, memórias, sonhos. Para quem trabalha comendo, esses questões vêm à tona com muita frequência. Quando aparecem os desejos específicos, nem sempre dá para aplacá-los. Muitas vezes é dia ou hora de ir a outro lugar, comer uma outra coisa. Concilia-se o dever com as tentações do apetite, na medida do possível. Agora, o duro mesmo é quando a fome, aquela, a da voracidade, custa a aparecer. Mas ela vem, por vezes quase como um milagre. É uma sensação recorrente, mas que se manifestou com incrível nitidez anteontem, terça-feira. Eu almocei no A.K. Delicatessen (R. Mato Grosso, 450). Queria provar algumas novidades do cardápio. Preferi beliscar a maior parte da refeição. Pedi holodets (o caldo de mocotó em forma de gelatina), carpaccio de língua em escabeche, arenque. Como prato, dividimos (note-se, estávamos em três) um tcholent, a dita feijoada judaica. Provei uma colherada do pain perdu, duas, se muito. No balanço geral, uma boa refeição, com dois reparos. No caso do carpaccio, o molho se sobrepôs demais à língua. No do tcholent, uma certa falta de pegada, de profundidade de sabor. E aqui cabe outro parênteses: bebendo apenas água e refrigerante, pagamos R$ 63 por cabeça. É caro, considerando que compartilhamos tudo. Mesmo não tendo comido tanto, não tive fome à tarde. Para a noite, eu já tinha me programado, iria ao Jacaré Grill comer... jacaré. No caminho, pela Av. Sumaré, já depois das 20h, nada: a barriga repleta. Cheguei ao bar, sentei, escolhi, ainda sem muito ânimo. E, enquanto esperava os petiscos iniciais, algo fez clec, parecia que uma chave foi mudada. Eu sentia fome. E provei do réptil, dois pratos diferentes. Fiz então o texto sobre a carne de jacaré, que saiu no Paladar de hoje (postarei aqui amanhã). Isso, de comer e depois escrever, é sempre um pouco sofrido, ora mais, ora menos. Mas a experiência vai nos dando segurança. Agora, os mecanismos do apetite, são sempre surpreendentes. Confesso que me espanto, por mais que conheça meu próprio ritmo, minha capacidade de digerir. E com licença, que preciso jantar.

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