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Banquetes imaginários

Na biografia de John Lennon ('A vida', de Philip Norman) há uma passagem interessante sobre a infância de Yoko Ono, ainda no Japão. Descendente de uma família de banqueiros, artistas, enfim, elite dos quatro costados, Yoko chegou a passar fome na Segunda Guerra - devido a racionamentos, estados de emergência, crises de abastecimento e outros problemas típicos dos grandes conflitos bélicos. Quase pré-adolescente, ela cuidava do irmão mais novo e, em certos momentos, diante da falta de comida, usava a veia criativa para compor banquetes de faz-de-conta. Imaginava longas refeições, ao estilo imperial, cheias de entradas e pequenos pratos. Coisas sofisticadas, em apresentações detalhistas. E assim se mantinham diante da inevitável escassez. Lendo isso lembrei de uma velha história contada pela minha avó materna (nascida em uma família de imigrantes do Vêneto, gente que veio para cá num miserê danado, para trabalhar na lavoura do café). Certa vez, um vizinho defumava linguiças, com todo aquele cheiro se espalhando pelos arredores. E ela, com uma fatia de pão na mão, sorvia o aroma e mastigava casca e miolo como se fossem um bom pedaço daquela carne de porco que ela sequer enxergava - mas que era tão inspiradora. A memória puxou então por outra coisa. 'Olhai os Lírios do Campo', de Érico Veríssimo, obra lida há muitos e muitos anos. Um trecho em especial. Eugênio, o protagonista, então Genoca, menino e muito pobre, se queixava de fome para o pai que, resignado, aconselhava: "Vai dormir, filho. Sono é pão". Nascido felizmente num ambiente sem tanta penúria, crescido já com o apetite devotado à boa comida, confesso que às vezes me pego montando menus fictícios. Nada tão vanguardista, mas sempre com alguma pretensão criativa. Será que daria certo fazer uma entrada misturando certo ingrediente com aquele outro? E uma apresentação assim, em vez de assado? E se tal coisa fria for sobreposta a uma outra, quente? Entre tantos devaneios, alguns deles até acabam sendo experimentados na cozinha. Fazem sentido? São harmônicos? Às vezes até sim, saem de primeira. Em outras ocasiões, exigem repetição, precisam de aperfeiçoamento, alterações, tentativas e erros. Mas vários valem apenas a distração, são quase como contar carneirinhos (ou seria melhor dizer cordeirinhos, com paletas, costeletas, pernis?) antes de dormir. Nem o ritual kaiseki das pantomimas de Yoko, nem o ludibriar dos sentidos da minha avó, nem o pão do Genoca. Apenas o entretenimento de um banquete imaginário.

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