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Belezas, memórias, persistências

Não lembro, nos últimos anos, de ter visto um filme com a capacidade de persistência na memória ? vamos chamar assim ? de A Grande Beleza. São lampejos, faíscas, que sugerem quase uma confusão dos sentidos. Sabem certos sabores que, de repente, reaparecem, meio que do nada? Eu sinto isso, de vez quando ? falando, agora, sobre paladar, ou de uma espécie de alucinação gustativa. As amêijoas na chapa, só com sal e azeite, no Rafa?s, em Rosas, na Costa Brava. O caldo dashi ?recém-passado?, em Kyoto. Ou, bem mais remotamente, o frango e o lombo que grudavam na assadeira da minha avó (eu gostava de raspar a fôrma depois do almoço). Mas o fato é que o filme me vem à cabeça, toda hora. Dormindo, ou andando pela rua, ou fechando os olhos no farol vermelho para descansar por um segundo da luminosidade do sol. Cenas, planos, instantes. Os jardins, as pontes do Tevere, a vista sensacional do apartamento do protagonista, aquelas festas repletas de figuraças. O que não significa que seja um dos meus longas preferidos, pois nem é. Eu gostei muito, é verdade. Porém, o que me intriga, mesmo, é a tal da persistência. Não conheço Roma tão bem mas, por um momento, achei que a referida vista da casa de Jep Gambardella nem existia. Fazia parte da cidade real mezzo irreal proposta pelo diretor. Não me lembrava de nenhum prédio com aquela paisagem do Coliseu. Contudo, o amigo Gerardo Landulfo, que conhece a Itália como poucos, me contou que o tal palazzo existe ? embora não seja tão na boca assim do mais famoso monumento romano como o filme dá a entender. Minha maior restrição à Grande Beleza, por outro lado, é com sua duração. (Luis Fernando Verissimo, a propósito, também comentou sobre esse aspecto, apesar de ter adorado). Minto, não é nem a duração. Creio que não tem apenas a ver com o fato de estarmos viciados em filmes de duas horas, canções de quatro minutos, posts com poucos caracteres. Acho que é um problema de curva dramática, como se diz em ópera. A coisa avança, avança, parece que vai se resolver... mas não se conclui. Aí, surge outra situação, tudo leva a crer que é derradeira... mas não. E então outro momento, mais um ápice... e o conflito não se fecha. Chega uma hora em que começamos a torcer, ?acaba, pelo amor de Deus?. Será que os cineastas andam se levando a sério demais?  A Grande Beleza, na soma total, tem, para mim (vou chutar), pelo menos 20 minutos de gordura, fácil, fácil. Azul É a Cor Mais Quente, outro bom filme, com interpretações de primeiríssima, também podia ter meia hora a menos. Ninfomaníaca, então, é tão extenso que precisou se dividido. E aí eu lembro de livros como ?O Gênio do Sistema?, um relato sobre a idade de ouro dos ?super-produtores? de Hollywood, como David O. Selznick: de tão poderosos, eles não apenas determinavam o negócio do cinema, mas influiam na estética, no produto final. Mandavam cortar, esticar, trocar... até porque entendiam do assunto. Não sei, assim sendo, se andam faltando Selznicks para cortar as barrigas e acertar as curvas dramáticas que os diretores andam deixando passar. (Só para ficar claro: não estou defendendo a mera submissão da sensibilidade do criador à tesoura de algum departamento burocrático. Estou afirmando o valor de um olhar externo. De alguém que possa funcionar como um interlocutor/interventor do artista, com talento e acuidade para extrair o melhor da obra ? seja ela de que tipo for. Não fosse a caneta de Ezra Pound, riscando, enxugando, propondo, T.S. Eliot talvez não conseguisse fazer de Wasteland um dos maiores (o maior?) poemas do século 20. E isso vale para todos os âmbitos. Cozinheiros. Jornalistas. Um editor arguto, por exemplo (Ilan Kow foi o melhor com quem trabalhei), tiraria 30% do blablablá deste post. Aliás, gosto do jeito como o genial Murilo Felisberto definia a função: editar é a arte de jogar fora.) Saber terminar as coisas (e este texto já está ficando pançudo e deformando a curva), portanto, é realmente uma virtude e tanto. Voltando a falar de comida, que é o assunto do blog, não foram poucas as vezes em que me deparei com menus-confiança que pareciam intermináveis. Conceber uma boa degustação tem a ver, como sabemos, com senso de harmonia; com dosagem de tempos e pesos; com porcionamento; com talento para balancear o piano e o fortíssimo; com capacidade de surpreender. Se um menu pode contar uma história em quatro ou seis tempos, por que fazer tudo em quinze etapas? Na última temporada do El Bulli, eu encarei uma sequência de 51 itens (platillos, snacks, coisas, nem sei como chamá-los) e, digo honestamente, valeu todo o esforço, o programa foi sensacional. Por outro lado, já passei por situações em que um encadeamento de oito pratos parecia uma barreira intransponível. Vai entender... As experiências superiores, quero crer, são as que se perpetuam. Mesmo que com a volatilidade de um flash, elas darão um jeito de permanecer na memória e, volta e meia, cutucar nossa consciência.

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