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Bebida

O big-bang da vinha duriense

Estive duas vezes na Quinta do Vale Dona Maria, a vertiginosa propriedade duriense (adoro essa palavra, quer dizer originário do Douro, com traços romanos do seu nome latino, Durius) de Cristiano e Joana van Zeller (no Porto se diz: os van zellerés). Na primeira visita, no auge do verão, em agosto, as videiras no estágio final de maturação de suas uvas para a colheita, o calor era brutal, algo que só sentira em Sevilha, igualmente num agosto, décadas atrás. Não há sombra, ventilador, ou brisa que atenue. E só pedra e sol, sol e pedra, implacáveis para os miolos humanos e necessários no seu rigor para a doçura e qualidade única das uvas na região.

O big-bang da vinha durienseFoto:

FOTOS: Luiz Horta/Estadão

Foi bom me sentir uma videira, ver por que é necessário deitar raízes profundas em busca de nutrientes e alento. Viver tudo aquilo da paisagem árida, que, logo em seguida, relaxa em beleza, na exuberância da colheita e no festivo e transformador da produção. É uma espécie de véspera, o mundo esperando a explosiva e decisiva cantoria das matinas de setembro, quando toda a tensão do ano, desde o adormecimento do inverno ao brotamento da primavera, aos riscos de doenças, de geadas, de granizo, passou. E eis a uva!

Cristiano é um dos maiores enólogos portugueses (e não estou brincando com seu tamanho), nascido quando ainda era da família a velha propriedade senhorial da Quinta do Noval, com todas aquelas ramificações que tornam parentes ou interligados os portugueses do norte ligados ao vinho, com origem antiga, holandesa ou inglesa, remotíssima. E, apesar de caçador de perdizes dedicado e apaixonado, capaz de falar com intensidade ameaçadora sobre armas, cães perdigueiros e a emoção do tiro certeiro, é um homem cordial, bonachão e sorridente. Algumas horas passadas com ele são um curso de vinho e de humanidades. Em resumo: um grande companheiro de mesa.

Cristiano teve a honestidade de não abrir nenhum vinho antes da prova.

Nessa primeira visita me hospedei na Quinta, tivemos almoço al fresco (ironia, o vento era morno), e ele contou que no verão passado, bem lá no fundo do vale, a temperatura atingiu 50°C, o ar condicionado do carro estourou e Cristiano teve que derramar água sobre a cabeça até conseguir chegar ao abrigo da cantina, ou morreria.

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O Douro é assim. Urbanoides como eu, se algum dia sonharmos produzir vinhos, precisamos cair na real, não é para qualquer um. Uvas e enólogos precisam ser resistentes. Nessa primeira visita provei todos os vinhos das suas diversas propriedades e gamas (leia abaixo), os VZs e Van Zellers, os CVs (Curriculum Vitae e não Cristiano van Zeller, ressalta) e os Vales Dona Maria. Foi um curso que merecia diploma.

E o diploma veio em setembro, quando voltei, privilegiado convidado com mais quatro colegas do jornalismo de vinho brasileiros e a suma da imprensa de vinho portuguesa para uma inédita prova vertical de todos os Quintas do Vale Dona Maria. Cristiano fez a prova mais impecável que já vi, porque teve a honestidade incrível de não abrir nenhum vinho antes. Sentou-se conosco e submeteu-se às surpresas e aos riscos das decepções ali em público, degustando na hora o que tinha acontecido na sua vida engarrafada. Abriu na nossa frente cada garrafa, todas de sua reserva pessoal, e foi apreciando conjuntamente com o público exigente. Um atrevimento corajoso, mas que teve, como era de se esperar, a pontaria certeira do caçador. Os vinhos estavam dignos, elegantes, extraordinários. Alguns, obviamente, como grandes antenas do terroir, melhores, refletindo suas safras (leia abaixo). Num annus mirabilis para mim, em que provei mais grandes vinhos que o habitual, esse foi um dos maiores privilégios. Senti-me gente grande.

QUINZE SAFRAS EM UMA PROVA

Foram 15 safras, de 1996 a 2010. Não vou comentar cada uma, pois seria longo e interessaria apenas ao leitor especializado. Prefiro destacar minhas favoritas, com um perfil rápido de cada, e falar das disponíveis aqui, importadas pela Vinhosul (tel. 3507-789). Pela dimensão da degustação, os vinhos foram servidos em etapas. Primeiro, os Quintas do Vale Dona Maria de 1996 a 2003, entre os quais me encantaram o 01, o 03 e o 2000, nesta ordem. O 2001 tinha um delicioso nariz de batata assada, umami, taninos potentes e finos, por evoluir, acidez equilibrada e elegância única. Anotei na caderneta: excelente em tudo. O 2003 tinha muita fruta escura no nariz, toque picante. Liberei a poesia e anotei “aroma de sombra, como cheirar o frescor do escuro”, desculpem o entusiasmo. Na boca era mineral, longo e de um refinamento exemplar, foi um dos que ganharam mais estrelinhas para mim, na prova inteira. O 2000 tinha aroma de toffee, de café, taninos marcados na boca, fácil de beber, ótima acidez. Na segunda rodada, de 2004 a 2010, meu destaque, por sorte (pois é a safra que se encontra aqui), foi o 2008. Apesar de fechado inicialmente no nariz, tinha uma boca generosa e com muita mineralidade, muito fino, mas contido. Brinquei que era da margem fineza e não da margem potência do rio dos vinhos. Ainda tem anos de vida e sempre estará equilibrado. Nasceu para ser nobre, esse aí.

>> Veja todos os textos publicados na edição de 22/11/12 do ‘Paladar’

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