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O campeonato, o campeão e o copo

Conheça mais sobre o campeonato de sommeliers de cerveja

Tulipa? “Não”, diz na lata o sommelier Luiz Caropreso. “Kölsch”, afirma o também sommelier Renê Aduan. “Não”, discorda Caropreso. Renê mostra uma foto no celular, eles discutem, Renê volta ao celular e declara: “stange!”. Caropreso finalmente concorda.

 Foto: Estadão

Campione. Simonmattia Riva avalia amostra da terceira prova do Mundial. FOTOS: Chico Max/Divulgação

O diálogo foi minutos antes do anúncio do vencedor do 4° Campeonato Mundial de Sommeliers de Cerveja, no sábado em São Paulo, e ilustra a minúcia que ditou o dia. O copo em questão foi usado na primeira prova, às 9h25 da manhã. Dez copos stange com 75 ml de cerveja a 5°C esperavam nas mesas dos 48 candidatos. Junto deles, duas folhas com 30 rótulos de cerveja estampados. Cada concorrente tinha 40 minutos para provar as cervejas e encontrá-las nas folhas de rótulos. Para isso, precisavam primeiro identificar o estilo e então procurar o rótulo.

A sete minutos do fim da prova, o campeão brasileiro, Gil Lebre termina e sai da sala. “Mas já?”, provoca Tatiana Spogis, terceiro lugar no último mundial e cicerone do dia. “Nasci pronto”, rebate, marrento, repetindo o lema com que abriu sua apresentação na final nacional. Depois, capitula: “Ser o primeiro no Brasileiro não quer dizer nada aqui.” E diz que esperava sentir mais pressão. Seu colega Markus Sailer, campeão alemão, não tem a mesma sorte. Uma equipe de TV registra cada movimento que ele faz para a produção de um documentário sobre o mundial.

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Fim da prova, no intervalo, brasileiros discutem a amostra 3. “Farmhouse ale ou a Saison Dupont”, diz um. “Não era a Dupont”, diz outro. “Era, sim, tenho certeza”, emenda, torcendo, mais um – a organização apenas informa que não tinha nem farmhouse ale nem saison entre as amostras.

Enquanto eles discutem no pátio, na sala de provas, alguns dos melhores e mais experientes sommeliers do Brasil e do mundo – Oliver Wesseloh, campeão mundial de 2013, Michael Zepf, diretor de educação da Doemens (escola de formação de sommeliers, que promove o campeonato), e os brasileiros Cilene Saorin, Kátia Jorge, Tatiana Spogis e Herbert Schumacher – arrumam as mesas para a próxima etapa, um teste com 50 perguntas de múltipla escolha.

Tudo pronto, o diretor-geral da Doemens, Wolfgang Stempfl, diz um singelo “podem começar”. George Franceschi, porto-riquenho que coleciona os títulos de sommelier de cerveja, vinho, tequila, saquê e maior figura da competição, pergunta: “Uma questão pode ter mais de uma reposta?”. Filosófico, Wolfgang responde: “Todas têm”. Segundos depois, entende a pergunta e esclarece: “Sim, questões podem ter mais de uma resposta correta”. Mas estava difícil encontrá-las, a julgar pelo desânimo dos candidatos ao fim da prova.

 Foto: Estadão

Amuleto. George Franceschi, de Porto Rico, carregava um escanção, símbolo dos sommeliers

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A próxima prova encerra a primeira etapa. Somados os pontos dessa fase, são definidos os três primeiros finalistas. Desta vez, são dez amostras idênticas e uma lista de sabores, bons e ruins. Banana, alho, mofo de rolha, ralo podre e vômito de bebê estão entre as opções. São 50 ml por copo. A base é uma “latin-american light lager bem comercial”, diz Cilene Saorin (tipo Skol) aromatizada com cápsulas do composto químico de cada sabor.

Os candidatos chacoalham o copo tapado com a mão e depois levam ao nariz, usam a mão para estreitar a boca do copo, fazem de tudo para concentrar ainda mais o cheiro. Depois de cada amostra cheirada, é um tal de esfrega o nariz e assoa o nariz, tudo para se livrar da amostra anterior antes de passar para a próxima. O método de André Rodrigues chama a atenção: ele enfia o nariz para dentro da camiseta e dá umas cafungadas. Antes de tirar sarro, saiba: ele vai para a final.

Zebra Desde o início, tudo reforça o favoritismo de alemães, por tradição, e brasileiros, por empolgação. Mas, na hora do anúncio dos finalistas, o primeiro nome é italiano. Simonmattia Riva arregala os olhos e abre a boca. Ele fica perplexo por duas horas, vagando pelo pátio da academia. O segundo é alemão. Frank Lucas dá um oitavo de sorriso e cumprimenta os jurados como quem dá oi a desconhecidos. O terceiro é Rodrigo Sawamura. O brasileiro leva a cabeça à mesa para então levantar em um salto e ser festejado. Os outros 45 competidores farão mais duas provas disputando as três vagas restantes.

A primeira repescagem gira em torno de uma taça de cerveja escura. É preciso identificar o estilo, descrevê-la e sugerir uma harmonização. Desta prova saem dois finalistas. A competição ganha outro ritmo: se antes eram 40 minutos para 10 amostras, agora é o mesmo tempo para uma só. Fim de prova, começam os debates. Porter, stout, schwarz? “Faltava corpo para ser uma imperial stout”, diz um. “Faltava cremosidade para ser uma oatmeal stout”, diz outro. Não faltava, não. Era a Samuel Smith Oatmeal Stout. E os dois classificados para a final são o brasileiro André Rodrigues, o das cafungadas na camiseta, e Irina Zimmermann, única mulher na competição.

 Foto: Estadão

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2.235 km. Único carro no estacionamento da Academia Barbante, essa Hilux saiu de Buenos Aires 4 dias antes do Mundial, guiada por Martin Boan, candidato argentino

Irina, é a primeira vez que você é a única mulher em uma competição? “Não”. Você esperava chegar à final? “Sim”. E sai andando. Não estava afim de papo, talvez estivesse economizando palavras para sua apresentação na final. A última chance é a prova de harmonização. São cinco pratos e, para cada um, cinco estilos de cerveja. É preciso escolher o melhor par e defender a combinação. O menu: salada de rúcula, berinjela grelhada, paella, cordeiro, crepe suzette e queijo com chutney de figo.

Quando a prova termina, em todas as conversas, em inglês, alemão, espanhol, italiano e português, ouve-se: crepe suzette! Crepe suzette? Crepe suzette… Fernando Carvalho de Almeida, brasileiro que além de sommelier é chef de cozinha, explica a receita a uma rodinha. “Tem caramelo?”, pergunta Tegnus Lamas, que apostou nas notas caramelizadas. Fernando é franco: “É mais laranja que caramelo”.

O suíço Roger Brügger é anunciado como sexto finalista, a turma entra em dois ônibus e percorre os 14 km que separam a Academia Barbante do São Paulo Expo, palco da final.

Final Três garrafas de cerveja cobertas com tubos de papel e sete taças estão sobre a mesa. Três jurados de um lado, três do outro. Michael Zepft assume o posto de apresentador. Pega as credenciais dos candidatos e pede a uma jurada, Elisa Wiesen, especialista em lúpulos, que puxe uma delas. É a do suíço.

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Brügger entra ao som de AC/DC – cada candidato escolhe a música para seu caminho até o palco, o que remete à entrada de boxeadores em um ringue. As garrafas são reveladas. Entre a americana Brooklyn Sorachi Ace, a mineira Wäls Dubbel e a francesa Jenlain Ambrée, ele escolhe a Sorachi Ace. Faz uma apresentação rápida, diz “não me lembro de mais nada, obrigado” e sai do palco decepcionado.

 Foto: Estadão

3º lugar. A alemã Irina Zimmermann participou do mundial em 2013, mas daquela vez não foi à final

O segundo sorteado é o brasileiro André Rodrigues. Também ao som de AC/DC, ele chega com ar de quem quer quebrar protocolos. Suas opções são Wäls Dubbel, Jenlain Ambrée e a italiana Baladin Nora. Ele vai na francesa, uma sofisticada bière de garde, e abre a garrafa, arrolhada, com tanta informalidade que a rolha espoca como se estivesse na praia na virada do Réveillon. A proposta parece interessante, uma cerveja altamente cabeça, uma abordagem altamente cuca fresca. Mas o nervosismo fala mais alto, ele esquece o nome de um queijo, fala rápido demais e acaba a apresentação em menos da metade do tempo que tinha – são 10 minutos de prova.

O alto-falante começa a tocar Like a Prayer da Madonna e Irina Zimmermann entra. Ela pode escolher entre Wäls Dubbel, Baladin Nora ou a belga Rodenbach Vintage 2012. Pega a Wäls. E já começa a falar sobre a alegria de poder conhecer a cerveja vencedora do ouro na World Beer Cup. No lugar do nervosismo, desenvoltura e empolgação. Ao levar a taça ao nariz, solta um sincero “uau”, lamenta que o público não possa sentir o aroma e o descreve. Repete o mesmo ritual ao levar a cerveja à boca. Termina a apresentação com uma harmonização incrível: “Sugiro tomar essa cerveja sem acompanhamento”. É evidente que ela foi muito bem e ela sai do palco triunfante.

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Frank Lucas entra ao som de U2 e escolhe a Rodenbach. Antes de tocar na garrafa, conta que esteve em São Paulo 30 anos atrás, quando era estudante de anestesiologia, e faz uma análise olfativa da cidade – notas de coco (a fruta, que fique claro) e etanol. Ao servir a cerveja belga nos copos, lamenta: “é pena que vocês não possam ouvir o som dessa cerveja, ela cintila no copo”. É um competidor forte. Ele descreve a cerveja com um entusiasmo que dá vontade de beber.

 Foto: Estadão

Terceira prova. Mofo de rolha e vômito de bebê eram alguns dos sabores que os candidatos deveriam identificar

Mas um alemão entusiasmado é menos entusiasmado do que um italiano entusiasmado. Simonmattia Riva escolhe a italiana Baladin Nora. Ele conhece a história da cerveja, feita em homenagem à ex-mulher de Teo Musso, o mais importante cervejeiro italiano, cita ingrediente por ingrediente e como eles aparecem no copo. É arrebatador. O último a se apresentar é o brasileiro Rodrigo Sawamura, que diante das três cervejas na mesa – a escocesa Ola Dubh 30, a austríaca Samichlaus e a alemã Berliner Kindl Weisse – pergunta: “pode fugir?”

Não pode. Escolhe a Ola Dubh, começa a prova travado, mas logo se solta, ganha o palco, se movimenta com desenvoltura, mas se atrapalha e acaba falando em povos antigos e energia cósmica. Ah, o nervosismo… Na plateia, os palpites alternam o alemão, a alemã e o italiano nas três primeiras posições. Para decepção do público no SP Expo, o resultado é anunciado duas horas depois, em um jantar fechado no Eataly.

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Exaustos, os competidores agora bebem sem preocupação. O suíço Brügger e André Rodrigues empatam em quinto lugar. Apesar da torcida, Rodrigo Sawamura fica em quarto. O terceiro lugar vai para Irina, repetindo a posição feminina no pódio de 2013 – com a brasileira Tatiana Spogis.

O suspense fica para o anúncio do segundo lugar. Frank Lucas é vice e mal disfarça a decepção. Simonmattia Riva, que nem esperava ir para a final, volta a exibir sua cara de surpresa. Deve estar de olhos arregalados até agora, lá em Bérgamo, onde tem um brewpub.

O mundial em alguns pontos

O 4º Campeonato Mundial de Sommeliers de Cerveja, organizado pela Doemens Akademie, é realizado a cada dois anos. Esta foi a primeira edição fora da Europa. A próxima, em 2017, será em Munique. Participaram 48 candidatos, 21 brasileiros, 10 alemães, 5 austríacos, 4 italianos, 3 suícos, 1 americano, 1 chileno, 1 porto-riquenho, 1 venezuelano e 1 argentino. Conheça os vencedores.

– Simonmattia Riva, italiano, opera dois brewpubs em Bérgamo, é gerente de um e dono do outro. – Frank Lucas, alemão, ficou em 4º em 2013. – Irina Zimmermann, alemã, atua como sommelière. – Rodrigo Sawamura, brasileiro, é sócio do empório Balcão 304, em SP. – Roger Brügger, suíço, e André Rodrigues, brasileiro.

>>Veja a íntegra da edição do Paladar de 23/7/2015

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