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Quando Evita só tinha mate da véspera

Quando Evita só tinha mate da vésperaFoto:

Por J.A. Dias Lopes

Como era previsto, os argentinos homenagearam suntuosamente a memória de Evita Perón (1919–1952) no dia 26 de julho, por ocasião dos 60 anos da morte do maior mito feminino do seu país. Ela conquistou essa reputação pelo espírito populista, envolvimento nas causas sociais e no movimento operário, dedicação às obras assistenciais, luta pelo direito de voto para as mulheres e, convenhamos, pelo exercício da demagogia. Não por acaso, foi chamada “madre de todos los niños, de los tiranizados, de los descamisados y de los trabajadores” – como repete a letra da canção Santa Evita, que a pop star americana Madonna gravou em 1996.

Nascida em Los Toldos, na Província de Buenos Aires, com o nome de Eva María Ibaguren, o venerado ícone argentino teve um começo de vida difícil. Era filha de uma costureira pobre e do seu amante, um estancieiro casado. Por isso, enfrentou discriminações na sociedade de então. Na escola, as colegas eram desaconselhadas a brincar com ela. Evita passou a infância pobre sentindo o cheiro das empanadas criollas al horno, feitas pela mãe, cozinheira de mão cheia. Mas nem sempre as saboreou à vontade, porque precisava dividir a comida com os quatro irmãos. Aos 15 anos mudou para a capital argentina, acompanhando o cantor de tangos Agustín Magaldi. Queria ser artista, embora lhe faltasse talento.

Atrás do sucesso, Evita se envolveu com diretores e empresários, teve parceiros de algumas horas, passou fome. Mas, quando sobravam uns trocados, entregava-se ao prazer de um puchero (cozido) de carne acompanhado de cerveja Quilmes. Era uma modesta atriz de cinema e rádio quando conheceu o coronel Juan Domingo Perón (1895–1974), futuro presidente da Argentina, de quem se tornou amante, antes de casar com ele. Entretanto, foi o carisma arrebatador de Evita, aliado a sua capacidade de dominar as massas, que a livraram do anonimato.

Em apenas sete anos (de 1945, quando se uniu oficialmente a Perón, até 1952, ao morrer de câncer) tornou-se uma das mulheres mais importantes do mundo. À mesa, porém, apesar das sofisticações da cozinha e dos banquetes palacianos, Evita permaneceu fiel aos pratos da sua região natal, a Zona Central, onde estão Buenos Aires, Córdoba, Santa Fé e La Pampa. No dia a dia, além das empanadas criollas al horno, a primeira dama da Argentina mandava fazer perdices en escabeche e carbonada (ensopado rico) de gallina. Já o marido Perón, natural de Lobos, também na Província de Buenos Aires, apreciava pastel de papa y carne vacuna, um prato que lembra o escondidinho brasileiro. Consiste em um picadinho salteado no azeite com cebola, alho e pimentão vermelho, colocado entre duas camadas de purê de batata.

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A receita simbólica da vida de Evita, porém, parece ter sido uma simples infusão: el mate cocido. Recordava sua infância e juventude. A mãe fazia el mate cocido sobretudo no inverno. Preparava-o da maneira tradicional argentina. Colocava água em uma chaleira, acrescentava quatro ou cinco colheradas de erva-mate e deixava ferver. Quando a espuma que se formava na superfície começava a subir, tirava dali e adicionava um pouco de água fria, para assentar a erva-mate. Coava e servia em xícaras. Às vezes a água era trocada pelo leite e el mate cocido ficava mais nutritivo.

Nos dias mais duros, Juana Ibarguren (o nome da mãe) recorria à erva-mate que já tinha sido usada no chimarrão, posta para secar. Carlos Gardel, ao cantar o tango Yira, Yira, de 1930, composto por Enrique Santos Discépolo, explorou os limites dessa situação: “Cuando no tengas ni fe,/ ni yerba de ayer/ secándose al sol; /cuando rajés los tamangos/ buscando ese mango/ que te haga morfar…/ la indiferencia del mundo/ que es sordo y es mudo/ recién sentirás”. Os biógrafos estão certos. As dificuldades na infância e juventude moldaram o caráter de Evita e incutiram nela a obsessão pelo sucesso.

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