PUBLICIDADE

Comida

É muita cozinha com pouco nas mãos

Cuscuzeira de Rodrigo Oliveira, do Mocotó. Foto: Tiago Queiroz/AE

É muita cozinha com pouco nas mãosFoto:

Durante muito tempo a vergonha foi um ingrediente tão importante na cozinha caipira quanto o queijo, a rapadura e a mandioca. “O paulista nega suas origens quase como uma vergonha”, discursou o chef Ivan Achcar. Sem saber o que disse o colega, o pesquisador João Rural bateu na mesma tecla: “A comida caipira precisa ser colocada no seu devido lugar. Todo mundo tem vergonha de falar que faz. Diz que faz comida gaúcha, mineira, paulista…”.

Há dez anos, quando João dava uma palestra sobre o assunto, não conseguia juntar dez pessoas. Este ano discursou durante uma hora para 90, e ficou mais meia hora autografando livros. Os chefs Ivan Achcar e Bella Masano assumiram suas porções caipiras e saíram em defesa do outrora renegado cuscuz paulista. Sim, houve um grande avanço – mas ainda falta.

Talvez o desafio atual dessa culinária de séculos ligada ao tropeirismo seja o de perder o complexo diante da mineira (sua filha). A cozinha caipira é um antepasto de espertezas: “O caipira não é burro – serve a comida no fogão porque sabe que, na mesa, vai esfriar”, afirmou João Rural, que há anos roda o Vale do Paraíba em seu fusca colhendo receitas e a tradição oral da culinária. “O sucesso da nossa gastronomia tá embaixo do nosso pé, ele tá na terra.” A cozinha caipira não precisa ser bonitinha nem folclórica, apenas ser angu, ser frango caipira, couve, cará e doce de leite. Pronunciar seus “erres” sem… vergonha.

A cozinha sertaneja enfrenta desafio parecido. É que o sertanejo e o caipira são irmãos distantes que não se falam muito, mas basta uma ligação telefônica para lembrarem o quanto são próximos. E esse entrecruzamento de arraigadas tradições brasileiras foi o alicerce de quatro aulas do 6.º Paladar – Cozinha do Brasil: Cozinha Caipira, de João Rural; Cozinha e Mesa Paulista, de Bella Masano e Ivan Achcar; Cozinha de Raiz do Sertão, de Ana Rita Suassuna; e Origem Sertaneja, de Rodrigo Oliveira e Wanderson Medeiros.

“As coisas mais simples são mais difíceis porque requerem muito mais alma”, diz Ana Rita Suassuna, resumindo todo o sertão em uma frase. A herdeira de clãs de artistas e pensadores do Nordeste esgrime uma cultura de cozinha que se equilibra entre erudito e popular, entre o lírico e o discurso social. Não por acaso escolheu versos de cordelistas e repentistas para pontuar suas receitas. “Represento um bando de minoria: sou mulher, nordestina, sertaneja, velha e falo de comida de pobre”, disse, com “fibra de Maria Bonita”.

PUBLICIDADE

Rodrigo Oliveira e Wanderson Medeiros, chef do Picuí, em Maceió, tentavam explicar que o sertanejo é o essencial e que, para ele, ter já é fartura. Como exemplificou Ana Rita Suassuna com o ferro de passar queijo, “engomar” queijo não era o luxo que é engomar o jornal, e sim uma estratégia para fazer o alimento durar de um inverno a outro.

Rodrigo, acostumado a nadar contra a corrente (quebrou imperativos geográficos na Pauliceia), aproxima João Rural e Ana Suassuna: “O sertanejo e o caipira têm em comum o fato de fazerem uma grande cozinha com pouquíssima coisa em mãos. Nós não temos a diversidade da Amazônia”.

Sertão e roça

João não sabia nada sobre Ana Rita nem Ana Rita sobre João. Mas eles se cruzaram e começaram a conversar. “Você cozinha?” Ela disse que era “uma fazedora de comida doméstica; é no lar que a comida é legitimada”. João concordou. “Quando eu vou às casas das pessoas e observo o jeito como se põe a banha de porco na panela me sinto privilegiado.” João, que ouvira antes Ana falar em “comida de pobre”, engatou: “Conheci uma mulher do Vale do Ribeira que fazia pratos com banana e dizia que era ‘comida de pobre’. Comida de pobre, não, é a comida do futuro!” Ana Rita contou: “Tem um francês que me perguntou ontem ‘como é que uma coisa é tão gostosa e tão simples e não é conhecida?”

PUBLICIDADE

PUBLICIDADE