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Umbu a perder de vista na caatinga

Em Uauá, interior da Bahia, moradores não celebram sua fruta-símbolo nos moldes tradicionais: ela está nas entrelinhas, impregnado nas pessoas

Para um turista à procura de aventuras gastronômicas envolvendo a fruta-símbolo da caatinga, o Festival de Umbu, em Uauá, no interior da Bahia, pode não corresponder à expectativa. Você não vai encontrar ali fartura de umbu e seus produtos nem cozinheiros em barracas com pratos à base de umbu. Pelo menos não do jeito que a gente costuma ver em festivais que homenageiam um produto. Não se engane. É que para quem vive ali tudo parece óbvio, nem precisa mostrar. Mas o umbu que dá nome ao grande encontro está nas entrelinhas ou impregnado nas pessoas, nos animais e nas coisas. A pequena cidade, em todos os tempos, na safra ou na entressafra do umbu, é o próprio festival. 

Umbo e maracujá da caatinga na feira de Uauá. Foto: Neide Rigo/Estadão

O evento é organizado pela Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá, que começou com um grupo de mulheres arretadas em busca de independência financeira nos anos 1990. Hoje, vende geleia de umbu e maracujá-da-caatinga até para a Europa, e tem até cerveja artesanal feita com a fruta por cervejeiro jovem da comunidade que foi estudar fora bancado pela cooperativa. 

Para a cidade, o evento representa a oportunidade de se discutir políticas públicas, questões agrárias, merenda escolar, território e tantas outras demandas que vão se acumulando. Sem deixar de lado os concursos de poesia, de pintura, as apresentações de teatro e de cantoria. Agora, por que ir a um festival em plena terra do bode, a mais de 400 quilômetros de Salvador, a mais de cem quilômetros do Vale do São Francisco, em pleno sertão de céu azul que nos distrai de tudo? Exatamente por tudo isto. 

Caatinga. A distância da capital contribui para a preservação dos hábitos, das lendas, da cultura. Por ali passou o cangaceiro Lampião e seu bando, aconteceu ali a primeira batalha da Guerra de Canudos e foi na região que Glauber Rocha gravou Deus e Diabo na Terra do Sol, chapando o céu de branco que era para quem visse não se perder nele esquecendo do resto.

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 Foto: Neide Rigo/Estadão

Agora, andar pela caatinga com gente do lugar tendo o sol quente sobre a cabeça e espinhos de toda natureza sob os pés é um presente ainda que esta situação não pareça confortável. E esta gente, pode apostar, está toda na cidade quando rola o festival. É ali que você vai encontrar seus melhores guias, homens, mulheres ou crianças que vivem na roça, e sabem tudo da flora, da fauna, das comidas, dos remédios e das lendas da caatinga. É como ter a companhia de vários Riobaldos saídos do Grande Sertão, de Guimarães Rosa. 

Não vai ser no café da manhã do hotel em Uauá que você vai tomar um delicioso chá de flores de catingueira, mas na casa de alguém no Caratacá ou em Bendengó, onde caiu há 110 mil anos o maior meteorito de que se tem notícias no Brasil, e onde se pode tomar a bebida servida da garrafa térmica em copo de plástico. O chá de flores brancas de umbuzeiro cheirando a mel acompanha o manuê – o bolo de milho duro, água e açúcar, assado no forno de lenha. 

A gente jovem da cidade pouco explora os recursos naturais da caatinga – mas sabe da importância de sua preservação.  Se você conseguir companhia para um dia de caminhada pelas roças, vai descobrir o verdadeiro festival do umbu. Pessoas como dona Joana, dona Juvita e seu Isaías nos levam para o léxico fantástico do sertão onde reina o umbuzeiro, hoje tão reverenciado e bem tratado, em parte pelo trabalho de conscientização da cooperativa. 

Carne de bode. Considerada a capital do bode naquele sertão do São Francisco, Uauá tem a melhor carne porque ela já vêm temperada, dizem os criadores. A dieta, composta de frutos e folhas de umbu, macambira, quebra-facão, carqueja, favela, é complementada ainda com velame, erva aromática abundante na região. Os entendidos sabem quando o bicho se alimentou com esta erva, que serve também para intercalar as mantas embaladas para transporte. Vai mandar bode para o filho em São Paulo? Coloca galhos de velame no meio, que é para não estragar. 

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Acontece que quase toda a carne consumida em Uauá é de bode de sol. Ou de galinha de capoeira. De vaca quase não há. O bode é abatido, limpo e aberto com o primor de um cirurgião a dissecar para que fique como um tapete pintado em branco e vermelho. O sal é pouco, que é só para suar. Com o tempo seco, em cerca de 24 horas a carne já está desidratada, pronta para ser vendida no galpão coberto que é a grande atração na segunda-feira, dia de feira de rua.

Mercado de bode. Foto: Neide Rigo/Estadão

Que raça é, pergunto ao vendedor de bode. Pé duro, diz. Tudo ali é pé duro. Porco pé-duro, bode pé-duro, gado pé-duro e galinha de capoeira, o que quer dizer que é tudo animal sem raça definida, rústico, mestiço. E aí está o segredo do bode criado sem ração, só com a comida e o tempero que a caatinga lhe dá. Bode a gente encontra em todos os restaurantes e é sempre muito bom. Pode ser carne em molho ou assada, mas saiba que assada quer dizer frita em óleo até ficar sequinha. Dá para ir comendo em lascas, deliciosa, com farinha. Só falta para acompanhar o vinagre de umbu, que quase ninguém mais faz. É um fermentado de umbu, reduzido no fogo de lenha até ficar preto, ácido e doce. 

Então, o festival do umbu é assim, bem grande, a perder de vista naquele tapete amarelo de catingueiras. Para ficar perfeito, só falta ter produtos de umbu nas confeitarias, nos restaurantes, nas lanchonetes e na merenda escolar. E cerveja de umbu nos bares, que ninguém é casco duro como bode. 

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