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Comida

Laurent Suaudeau, um mestre afiado

Aos 60 anos, Laurent Suaudeau acumula prêmios e honrarias, como a que vai receber do governo francês, mas o título que prefere é o de mestre. Formou grandes chefs. Agora, seu instituto vai investir em jovens carentes

 . Foto: Daniel Teixeira|EstadãoFoto: Daniel Teixeira|Estadão

Na semana que vem, no próximo dia 9, quando Laurent Suaudeau for galardoado cavaleiro da Ordem da Legião da Honra, condecoração pelo mérito criada por Napoleão Bonaparte, vai ter mais uma prova de que valeu a pena. É que foi por pouco que o chef francês, hoje com 60 anos, não pulou fora da missão tropical para a qual foi indicado por Monsieur Paul Bocuse há quase quatro décadas.

Era dezembro de 1979. Um jovem talentoso acabava de chegar da França para trabalhar no restaurante do Hotel Meridien, no Rio de Janeiro, com ganas de se fazer reconhecido. Mas logo ele recebeu ordens para usar só os produtos congelados que tinha no freezer do hotel. Ficava olhando o mar de Copacabana da janela do quarto e não entendia como não tinha peixe fresco para ele cozinhar. Foi à Cobal, comprou camarão fresco e outros produtos do dia, com seu dinheiro, e voltou com a sacola pingando para o hotel. Foi repreendido pelos empregadores, que o proibiram de cozinhar com o que trouxera. Com o despeito dos seus 23 anos retrucou: “Então pode comprar minha passagem para a França. E liga para o Monsieur Bocuse para avisar que estou voltando.”

  Foto: Daniel Teixeira|Estadão

Laurent ficou. Rapidamente virou o chef do restaurante, depois abriu sua própria casa, em Botafogo. Ganhou prêmios e clientela e, ao lado do compatriota Claude Troisgros – também enviado ao Brasil por Bocuse –, foi responsável pela enorme tarefa de inaugurar a alta gastronomia por aqui. Com a bagagem técnica e o rigor da escola francesa, começou a explorar os ingredientes brasileiros. Fez mousseline de mandioquinha com caviar, se encantou com o caju, botou o palmito pupunha no menu-degustação. E abriu o caminho para que figuras como Alex Atala pudessem surgir.

Nos anos 1990 mudou-se para São Paulo e teve outros restaurantes de sucesso. Mas já ali começou a fazer o que mais lhe dá prazer e que é, afinal, sua grande vocação: formar pessoas. 

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Enquanto os chefs foram aparecendo cada vez mais, ao ponto de hoje serem celebridades, Laurent foi indo para os bastidores. Em 2000, abriu sua Escola da Arte Culinária. E formou chefs hoje famosos no País, como Paulo Barros (ex-Grupo Egeu), Jefferson Rueda (A Casa do Porco), Rodrigo Oliveira (Mocotó), Douglas Santi, que está em Londres, entre dezenas de outros profissionais que continuam chamando Laurent de mestre.

Treinou cozinheiros que foram participar das competições como o prestigiado Bocuse D’Or, como a alagoana Giovanna Grossi, que em janeiro vai representar o Brasil nas finais em Lyon.

E, agora, na mesma semana em que vai virar cavaleiro da Legião da Honra, relança oficialmente o Instituto Laurent, associação sem fins lucrativos voltada à formação de jovens de 16 a 21 anos em situação de vulnerabilidade social, dispostos a dedicar a vida à cozinha, assim como Laurent. “Eu também não podia pagar o curso quando era jovem, no entanto consegui me formar e hoje me sinto na obrigação de ajudar”, diz o chef.

A honraria que vai receber das mãos do embaixador francês o faz corar de lisonja. Mas as lágrimas só inundam os olhos miúdos quando relembra de todos os cozinheiros que lapidou. Fora do enquadramento das câmeras, longe do centro do palco, Laurent Suaudeau desempenha papel de protagonista para a evolução da gastronomia brasileira. 

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A conversa a seguir da equipe do Paladar com o chef Laurent Suaudeau começou na última segunda-feira (31), no estúdio da Rádio Estadão. Seguindo a tradição do programa Paladar no Ar, em que cada convidado traz comida ou bebida, o chef francês chegou com uma bandeja de madeleines fresquinhas e muito perfumadas.

“Foram feitas pela Giovana, lá na Escola Laurent”, contou. Elogiou a harmonização com chá Darjeeling, selecionado pela colunista de vinhos Isabelle Moreira Lima. E durante uma hora conversou animado, contou que, fora da cozinha, história e política são as coisas de que mais gosta, além de ler e ouvir rock. Lembrou episódios, contou histórias, alfinetou e falou de temas relevantes para a gastronomia. A seguir, alguns trechos da entrevista.

SERVIÇO NO BRASIL Piorou muito. Prevaleceu muito a cozinha. Só falamos nos últimos anos do cozinheiro, da imagem do chef. A gente esquece que quando alguém compra um momento no restaurante é uma prestação de serviço, que inclui desde a recepção até o serviço na mesa, a qualidade da cadeira, o ambiente. Isso é tão verdade que no Bocuse D'Or pela primeira vez terá concurso de garçom. E qualidade de serviço não é sinônimo de luxo. O restaurante pode ter estrutura simples, mas o garçom tem que saber falar muito bem do que está servindo. Na maioria das vezes a gente vê o contrário, o cara olha para você e só vê quanto ele vai poder te tirar, está ali só pensando na porcentagem do fim do mês. A noção da prestação de serviço tem que ser enobrecida. Não a figura do chef ou do maître. 

CHEFS COMO CELEBRIDADE Nesse mundo de visibilidade, isso tem um lado muito positivo. Quando Bocuse permitiu que o chef deixasse de ser um cara isolado que enchia a cara o dia inteiro, demonstrou a beleza e a grandeza do nosso ofício. Mas já ali poderíamos esperar chegar onde chegamos. Em 1978 fui convidado para jantar no Alain Chapel, o chef mais preparado intelectualmente daquela geração da nouvelle cuisine. Quem me levou foi o Alain Ducasse, que era o sous-chef, tínhamos trabalhado juntos no Michel Guérard.

Fui servido como príncipe, eu tinha 23 anos, e pensei: lá vem coisa. Não deu outra, no fim do jantar Monsieur Chapel estava me esperando no bar com um charuto, aquela figura elegante, brilhante. Me chamou para trabalhar lá. Depois disse algo que me marcou: “é, rapaz, nosso métier de cozinheiro está com vento em popa, e pagaremos muito caro por isso no futuro”. É o que está acontecendo hoje. Estamos pagando pelo pecado do enobrecimento um pouco ‘over’ da figura do chef. Não estou criticando esses programas de TV, eles têm um lado positivo de despertar o interesse pela gastronomia. 

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O chef com um dos seus pratos icônicos, lasanha de pupunha com camarão. Foto: Felipe Rau|Estadão

VOLTA À COZINHA Paul Bocuse mandou a mensagem de fim de ano: “voltem para suas panelas”. Acho isso extraordinário. Um chef não pode entrar no restaurante ao meio-dia, tem que chegar às 7h30, 8h, acompanhar toda a preparação. A equipe olha para você com respeito e você tem que estar à altura desse respeito. Em 1981, eu estava almoçando com o Bocuse e disse: “Monsieur Paul, vou ser o melhor”. Ele olhou para mim e falou: “melhor de quê, seu babaca?”. Fiquei pasmo. Ouvir dele que a noção de ser o melhor não significava nada foi uma porrada muito grande para mim. E isso reforçou meu lado rebelde. Mas entendi que um artesão tem que fazer o melhor que pode, não ser o melhor. Não existe o melhor.

IRRELEVÂNCIA DO MICHELIN Não concordo com a forma dos guias avaliarem. É supérfluo, falta conteúdo. Os guias já não são tão relevantes. Isso é bom. O mundo mudou, o que vale é prestação de serviço para o seu cliente, que vai ser o grande divulgador do seu sucesso. Eu acho que o guia é efêmero. Pode melhorar o faturamento do restaurante na semana do lançamento, mas se você não corresponde ao que se fala, perde bem mais na semana seguinte. 

FORMAÇÃO TÉCNICA Eu sempre tive essa vocação da formação. Quando comecei com o Bocuse já ali os novatos vinham parar na minha mão. E isso me fez lidar com gente do mundo inteiro, é genial lapidar caras que chegam quadrados. Acompanhar o crescimento profissional deles é, sem dúvida, a maior satisfação que tenho. Acredito muito no instinto do indivíduo, principalmente do gestual. Tem gente que tem rapidez, agilidade que é mais importante na cozinha que o conteúdo intelectual.

O problema é que, hoje, nosso sistema, e não só no Brasil, dá preferência ao ensino teórico. Não podemos olhar para o ensino técnico como uma coisa paralela, marginalizada. O ensino de um oficio é tão nobre quanto frequentar uma faculdade. Só que, no modelo das escolas técnicas, falta flexibilidade. Por que não se apoiar nos grandes chefs para formar novas gerações? Estudo e trabalho. O trabalho não mata ninguém. Como alguém vai aprender a cozinhar sem saber como servir um cliente de verdade, que pode reclamar, não gostar? 

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MENU-DEGUSTAÇÃO É válido. Mas eu não costumo pedir, não. Prefiro me lembrar de um só prato do que aquela sequência cansativa de 15 pratos. Na verdade, não vou muito a restaurante. Falta tempo. Cozinho bastante em casa, coisas simples, um peixe, grelhados. Outro dia fiz uns lagostins com maionese para minha sogra, que tem 90 anos, ela adorou. Tem coisa melhor do que isso?

VANGUARDA Admiro o Ferran Adrià, porque ele sacudiu o coqueiro. Foi a fundo na reflexão, não parou de se perguntar o porquê e o para que na cozinha. O avanço da tecnologia é compatível, sim, com a cozinha de sabor, claro que é. Mas, hoje, com tanta complicação no mundo, as pessoas saem para comer coisas mais simples... Recentemente fui à França, jantei num três estrelas em Paris e depois num restaurante de 30 euros em Uzès. E preferi o de 30 euros. Foi o que mais me surpreendeu, pela cor e pelo sabor dos produtos. 

RESTAURANTE Nunca mais quero ter. Já deu minha cota. Ter escola não é fácil também, não. Faço consultorias para grupos alimentícios, é difícil. Me falta talvez a adrenalina do restaurante, o momento do serviço, ver o cliente. Mas fico feliz em ver quem trabalhou comigo ter sucesso e reconhecimento. 

RECONHECIMENTO  Hoje sou reconhecido de uma forma diferente e que me agrada bastante. Não tenho mais o holofote “do melhor do ano”. Mas isso não me faz falta. Foi uma escolha consciente que fiz. Acredito no fundamento, na formação. Quando um cara no Rio Grande do Sul, outro no Nordeste, mandam e-mail dizendo que foram eleitos os melhores da cidade, uau. Sou muito amigo do Claude Troisgros, mas não me vejo fazendo o que ele faz. Se me convidarem para a TV, não vou. 

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SONHO Meu sonho é o Instituto Laurent ser uma referência em formação no Brasil. Não sei se Deus vai me dar saúde e vida para fazer tudo que quero no instituto, mas meu foco é esse. Muitas pessoas à minha volta querem me ver nos holofotes. E eu digo: não enche! Me deixa cuidar da minha vida!

FILHOS Óbvio que eu teria gostado que meus filhos assumissem um trabalho na cozinha, dizer que não seria mentira. Minha esperança são os netos. Quem sabe não aparece alguém para dar continuidade? Em compensação, fico até emocionado quando falo isso, ter o privilégio de ter ensinado e formado uns caras que me respeitam e olham para mim como mestre... Eles são os filhos que eu criei para um mercado que se chama Brasil. Isso é muito forte.

Giovanna Grossi representante brasileira do Bocuse D'Or ao lado do chef na Escola Laurent Foto: Jf Diorio|Estadão

ASSÉDIO Hoje em dia não falo, já falei no passado (coisas como o Bocuse me falou: "seu babaca"). Tem que ter cuidado, tem Justiça do Trabalho, o cara vai te levar por assédio moral, desacato. Às vezes você ter se magoado na vida faz bem. Para mim foi assim, porque no dia seguinte eu voltava com mais vontade. Tem hora que só a conversa não resolve. Mas tem limite, né?

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