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Comida

Linguiça com pós-graduação

Peças preparadas  na serra (Foto: Julia Rettmann)

Linguiça com pós-graduaçãoFoto:

Adriana Lopez estava farta das encheções de linguiças acadêmicas, com notas de rodapé, simpósios e jargões. Resolveu encher linguiças de verdade. Subiu a Serra da Mantiqueira e ali, em São Bento do Sapucaí, numa casa de frente para um verde vale, produz embutidos que são servidos no restaurante Pomodori, em São Paulo.

Adriana é historiadora, mestre pela USP. Recentemente, lançou com Carlos Guilherme Mota, professor emérito da mesma universidade e seu marido, um calhamaço de 1.056 páginas que propõe uma interpretação da história do Brasil. Mas isso, para ela, agora é passado. Ela abandonou documentos, arquivos e fontes primárias, peculiares ao ofício de historiador. Dedicada aos embutidos, só não abandonou a metodologia de pesquisa.

Primeiro, o levantamento bibliográfico. Ela foi aos livros aprender o que é necessário para obter um bom embutido. As fontes, no caso, foram estrangeiras, já que a maioria das publicações especializadas não tem tradução para o português. Recorreu – e ainda faz uso do expediente – à correspondência com os pares: escreveu para especialistas e entusiastas do assunto, como Bob del Grosso, dos Estados Unidos, que lhe deu, e ainda dá, dicas de como lidar com as carnes.

Depois, o recorte do problema. Como fazer embutidos de qualidade, um alimento de tradição imemorial em outros continentes, no Brasil? Encontrou a resposta nas conversas com o chef do Pomodori, Diogo Silveira, em um curso sobre embutidos em São Paulo. A casa que ela tinha construído ao longo de anos em São Bento do Sapucaí, a 1.700 m de altitude, com clima mais frio, era ideal.

Como se faz na Europa, Adriana transformou uma espécie de porão em cave, onde pendura os embutidos e mantém o controle da luminosidade e ventilação. É ali que faz a cura das carnes e a fermentação – o que possibilita o desenvolvimento de sabores – sem precisar de câmara frigorífica.

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Os embutidos, como os pães, são muito sensíveis às condições de temperatura e umidade. Foi com os pães, aliás, que Adriana começou sua história na cozinha. Ela os produzia de forma caseira, mas aos poucos começou a receber encomendas e profissionalizou o esquema. Se com os pães dava certo, com os embutidos haveria de dar também.

A investigação de Adriana já com Diogo foi então à próxima etapa: construção de hipóteses e realização das experiências. Eles testaram usar carne de porco de granja, mas logo acharam que o resultado não era satisfatório, pois os animais são alimentados de forma a engordar muito e rapidamente. Saíram-se melhor com porcos criados soltos. Também testaram tripas, até que se decidissem pela do boi.

Adriana não tratou o embutido como objeto historiográfico – ainda que ele possa sê-lo, já que os primeiros registros de sua existência vêm de antes de Cristo e para diversos povos ele tenha sido fundamental para a sobrevivência e criação de uma cultura gastronômica. Adriana conta que nem atinou para a possibilidade da pesquisa histórica. Queria é botar a mão na massa. Fato que, no entanto, dá espaço à reflexão da historiadora: “Sentia falta do trabalho manual e do resultado prático. Sou pragmática. Mas no Brasil, esse trabalho nunca foi valorizado, reflexo claro dos tempos de escravidão”.

 

Casa no campo. Numa ensolarada tarde de inverno, nos fins de junho, Adriana Lopez abriu sua casa – e a sala de cura – à reportagem. Atravessada a portinhola de madeira feita de tela vazada, no subsolo, os aromas do guanciale (bochecha), do prosciutto (presunto), da copa (sobrepaleta) e do lonzino (lombo) são incontornáveis.

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As peças estão dependuradas em maturação. É o cheiro das coisas curadas, um prêmio pela espera. Afinal, o presunto de pernil que estava sendo colhido entre junho e julho ficou um ano fermentando. Foi o tempo do que Adriana chama de bactérias do bem trabalharem.

As sopressatas, feitas com carne de paleta e gordura das costas (o lardo), são ensacadas em tripas, amarradas do teto até quase o chão. Outros cortes de pedaços inteiros de carne são amarrados em trama mais espaçada de barbante. Adriana desengancha as peças com placidez. >Sabe as datas em que cada uma foi pendurada. É de poucas palavras, suficientes para transmitir a seriedade com que trabalha com os embutidos.

E o cardápio de produtos que fabrica é extenso: além das partes do porco, que é aproveitado quase inteiro, Adriana usa também carne de boi. O coração de patinho, por exemplo, vira bresaola. Recém-colhida, é fatiada no prato. Sobressai o vermelho escuro e o sabor suave, muito diferente da carne suína. Mas esta também não fica atrás: a pancetta, cortada bem fina, evidencia a untuosidade brilhosa da gordura da barriga, mas, na boca, não guarda ranço, é leve.

O historiador (e marido) Carlos Guilherme Mota é o degustador de primeira hora. Serve o vinho, prova os embutidos e dá seus pitacos. Dá suas impressões a quente (no caso, no inverno da serra, mais a frio).

Entre discos, livros e a visita ocasional de um tiê-sangue na varanda, o casal historiador parece ter encontrado a casa no campo ideal. Nesse ambiente, até as bactérias proliferam felizes.

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Mas com o espírito inquieto de historiadora, ela na não se dá por satisfeita. No último fim de semana, foi abatido um porco alimentado apenas com o pinhão da Serra da Mantiqueira (processo inspirado no porco iberico que come belotas). Ela ainda está à procura do porco perfeito.

Adriana Lopez e os livros ( Foto: Julia Rettmann) 

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