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Comida

O fim do queijo ilhado

Aos 200 anos, o queijo do Marajó só agora pode sair às claras da ilha que lhe dá o nome. Um recém-conquistado salvo-conduto de produto artesanal abre à tradicional iguaria marajoara de leite de búfala as portas para o Brasil

O fim do queijo ilhadoFoto:

Da Ilha do Marajó

As mais de três horas de balsa que separam Belém de Salvaterra são como que o rito de passagem para que enfim se aporte na Ilha do Marajó. A água que parece infinita faz a travessia lembrar que a viagem mar adentro é doce, afinal. E mantém Marajó como ilha. Para vencer esse caudaloso isolamento, somente uma força descomunal: a força do búfalo.

No trajeto por terra até Soure, principal cidade da ilha, na porção oriental, é impossível não notar o couro reluzente que encobre a massa muscular desses bichos. No Marajó, estima-se que vivam 500 mil cabeças de búfalo – o dobro do número de cabeças humanas. O búfalo é o símbolo do Marajó e lhe fornece tração, carne, couro e leite. E é seu leite, transformado em queijo por uma receita centenária, que agora começa a ganhar força para vencer o isolamento e chegar a outras cidades do Pará – e, em breve, do Brasil.

O queijo do Marajó saiu este ano da clandestinidade. Em um esforço conjunto dos órgãos de inspeção sanitária paraenses e da organização dos produtores, foi reconhecido como um produto artesanal pela lei estadual do Pará. Isso significa que, para receber o selo que permite a comercialização intermunicipal, os queijeiros não precisam mais atender às exigências sanitárias de padrão industrial que vigoraram nos últimos anos. Basta se adequar às normas da produção artesanal, muito mais apropriadas à realidade marajoara. “É um queijo intimamente ligado à tradição do Marajó. Temos trabalhado para o reconhecimento oficial disso e, assim, poder levar essa iguaria para além das nossas fronteiras”, diz Mário Moreira, diretor-geral da Agência de Defesa Agropecuária do Pará (Adepará).

O primeiro produtor a receber o selo, em maio deste ano, foi Carlos Augusto Gouvêa, o Tonga. Na fazenda Mironga (ele diz que o nome é anterior à música…), Tonga produz o queijo que aprendeu com o avô e ensinou ao filho, também Carlos Augusto, o Guto. Desde então, mais cinco produtores receberam o selo de produtores artesanais. Estima-se que sejam 60 queijeiros no Marajó, e o objetivo das agências do governo é legalizar a produção de todos.

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Processo. O queijo do Marajó demora um dia para ser feito e dura dez dias fora da geladeira. O melhor é comer a temperatura ambiente. FOTO: Júlia Rettmann/Estadão

“Deixamos enfim de ser marginalizados. Em função da burocracia, éramos estimulados a fabricar queijos que não o centenário queijo do Marajó. Teria sido muito mais fácil conseguir o certificado para produzir queijo prato, mussarela”, diz Tonga.

Ele logo esclarece aos desavisados do Sudeste que o queijo do Marajó é feito, sim, com leite de búfala, mas nada tem a ver com a mussarela de búfala, a bolinha de origem italiana. De fato, ao ver e provar um naco do queijo do Marajó, o imaginário da mussarela fica pra trás. O do Marajó é feito em fôrmas retangulares, é cremoso mas não aguado. Lembra um requeijão no sabor, mas é mais rijo, firme. A receita tem mais de duzentos anos, e chegou ao Brasil com os portugueses e franceses que colonizaram as redondezas.

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O queijo era feito originalmente com leite bovino, mas, pelo menos desde a década de 1930, quando o rebanho bubalino proliferou, é feito com leite de búfala. “Não tem comparação. O leite é muito mais gordo, mais rico, mais proteico. Tem em média 8% de gordura. O de vaca chega no máximo a 4% – e, ainda assim, o colesterol (do leite de búfala) é 30% menor”, diz.

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O chef Thiago Castanho, do Remanso do Bosque, em Belém, é um dos fissurados pelo queijo, mas tinha de recebê-lo às escondidas. “Finalmente, estão valorizando os nossos produtos”, diz o cozinheiro, que hoje é uma espécie de embaixador da comida paraense nas rodas da alta gastronomia mundial.

“Nós recebemos o selo 001 de produto artesanal do Pará. Ficamos surpresos – achávamos que seria para o açaí, para a farinha, para o tucupi”, diz o filho de Tonga, Guto, que foi estudar na cidade grande, mas como bom filho tornou à casa e hoje toca a queijaria da família. “O próximo passo é conseguir levar esse produto para além dos limites do Pará”, diz.

>> Veja a íntegra da edição do Paladar de 8/8/2013

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