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Peru à portuguesa (e à seu Telésforo)

Por Dias Lopes

Peru à portuguesa (e à seu Telésforo)Foto:

Único escrivão em uma cidadezinha da fronteira gaúcha, no final do século 19, o paraibano Telésforo da Cunha forrava o bolso com dinheiro de atas, termos de processo e outros documentos de fé pública. Mas era pão-duro. Só abria a mão na ceia de Natal, para a qual mandava a mulher assar um peru com recheio de farofa rica. Seu Telésforo, como todos o tratavam, tinha saído da Paraíba na juventude, para se incorporar aos Voluntários da Pátria, os batalhões que supriam de soldados as tropas brasileiras na Guerra do Paraguai (1864–70).

Dindon. Peru veio com os portugueses, que trouxeram da França. FOTO: Felipe Rau/Estadão

No campo de batalha, fez amizade com gaúchos vindos da sua cidade. Terminada a Guerra do Paraguai, acompanhou-os aos pampas e ali viveu para sempre. Enriqueceu e morreu velhinho, contando aventuras verdadeiras e imaginárias. O peru de Natal do seu Telésforo ficava no centro da mesa, em leito de farofa. Sua prole numerosa – cinco mulheres e dois homens – sentava em volta. Por tradição, cabia ao chefe da casa trinchar a ave. Seu Telésforo separava as duas coxas e sobrecoxas e colocava no próprio prato. O resto era para a família. Um dia seu filho mais velho namorou a garota mais feia da cidade e três meses depois anunciou casamento. “Ela está grávida?”, cogitaram os amigos. “Nada disso, vou casar para comer no Natal as duas coxas e sobrecoxas do peru!”

É uma história divertida, porém de autenticidade discutível. Pertence ao folclore. Mas, tem uma utilidade: mostra que os brasileiros consomem peru há muito tempo. Ao contrário da crença generalizada, a ave não chegou aqui por influência direta dos americanos. É originária do sul dos EUA e do México, de onde o conquistador Hernán Cortés a levou para a Europa no século 16. Os americanos primeiro o saborearam no Dia de Ação de Graças, festa celebrada em novembro para agradecer a Deus os bons acontecimentos do ano. Depois, estenderam o consumo ao Natal. O mundo cristão os imitou.

+ RECEITA: Peru recheado

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Os brasileiros não aprenderam com os americanos a comer peru no Natal, porém com os portugueses, que teriam assimilado o hábito dos franceses. Na Europa, a ave foi inicialmente iguaria senhorial. “Segundo uma tradição não desmentida, a entrada triunfal do peru na mesa real europeia terá acontecido em França, no casamento de Carlos IX com Isabel da Áustria, em 1567”, diz José Quitério, no Livro de Bem Comer (Assírio e Alvim, Lisboa, 1987).

A primeira obra de culinária portuguesa, Arte de Cozinha, do chef Domingos Rodrigues, de 1680, trazia cinco receitas de peru. O autor, que trabalhou na corte da parisiense d. Maria Francisca Isabel de Saboia, duas vezes rainha de Portugal, escreveu-a ao gosto dos franceses. Em 1840, O Cozinheiro Imperial, primeiro livro de cozinha do Brasil, com óbvia influência portuguesa e francesa, tem 24 receitas da ave.

Os portugueses do Norte, especialmente no Entre-Douro-e-Minho, não comem peru na consoada – a ceia que antecede a Missa do Galo, celebrada de 24 para 25 de dezembro – quando há abstinência de carne e reina o bacalhau. No almoço do Natal comem “roupa velha”, ou seja, as sobras da véspera. O peru aparece em triunfo no jantar, com o porco e a vaca. Já os portugueses do sul, sobretudo do Alentejo, que chamam a consoada de missadura, atracam-se às carnes ao findar a abstinência. Assam o delicioso peru preto, alimentado com bolota, o fruto da azinheira e do sobreiro, que também dá sabor especial ao porco da região. Preparam a ave com dois recheios, um à base de batata, outro de carnes variadas. Seu Telésforo lamberia os dedos.

>> Veja todos os textos publicados na edição de 20/12/12 do ‘Paladar’

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