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O encontro da gastronomia com a sustentabilidade

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Prato-cabeça

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Pimenta no prato dos outros

Identidades gastronômicas também podem se formar a partir de ingredientes exóticos e não-nativos: tradições são construídas permanentemente

O que seria a cozinha global sem pimenta? Imagine a Calábria sem embutidos picantes, a Índia sem curry como o conhecemos hoje, as ruas da Tailândia sem ensopado de camarão, os Pirinéus franceses sem o turismo de Espelette, os mercados árabes norteafricanos sem Harissa... Locais onde a pimenta é legado ancestral, identidade de um território e de um modo de viver.

Esses lugares já foram diferentes antes de desenvolverem conhecimento e uso, de forma peculiar, desse ingrediente da América tropical. Sem pimenta no prato, seriam difíceis de encaixar no imaginário contemporâneo.

A parcela de Europa que se firmou hegemônica na gastronomia se especializou com produtos incorporados no período das grandes navegações.A cozinha mediterrânea nasceu antes do tomate, mas sem ele não conseguiríamos hoje sequer reconhecê-la: que tal a Andalusia sem gazpacho, Nápoles sem pizza? Tão incompreensíveis quanto seriam, mas já foram, uma Espanha sem tortilla de batata e um Vêneto sem polenta. Ou uma Bélgica sem fritas nem chocolate.

  Foto: Paulo Liebert

Paradoxo atual é a movimentação de caricaturas rotuladas de cozinhas étnicas e de fusão, mais do que a construção de novas relações entre ingredientes exóticos e territórios. Curiosamente, isso acontece justamente quando a ciência e a informação nos permitem uma aproximação inédita com as origens de... quase tudo.

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É o caso da publicação - recém lançada pelo Instituto Socioambiental – sobre a jiquitaia Baniwa, mistura de pimentas do povo que habita a grande bacia do Rio Içana, na região do Alto Rio Negro, no Amazonas.Ao contrário das culturas acima, a identidade da nação Baniwa evoluiu junto com a pimenta. Na Amazônia ocidental, inúmeras variedades pertencentes a pelo menos quatro espécies do gênero Capsicum (Frutescens, Pubescens, Baccatum e Chinense) foram domesticadas por volta de 5 mil anos atrás, com indícios que remetem a até 8 mil anos.

A publicação traz um pequeno tesouro: caracteriza 43 variedades que os Baniwa usam nas misturas. Mas alerta: nas roças das 40 comunidades da bacia foram identificadas nada menos que 78 variedades. O que torna fascinantes os feitos de Calábria, Espelette e companhia, que ao longo de poucos séculos formaram identidade de territórios inteiros a partir da adaptação e desenvolvimento de apenas uma ou duas variedades, com preparos que por sua vez se globalizaram. É o que o Brasil fez com o café, africano, e não só no campo. Cafezinho é fator unificante. O brasileiro não diz “vamos realizar uma reunião de trabalho”, e sim “vamos tomar um café”.

O Içana é um Vale da Pimenta de apelo global. Como o Ucayali no Peru, com seus ajíes, ou o Trombetas, no Pará, com o Assîsî dos índios Waiwai. Lugares sagrados, onde calabreses, tailandeses, árabes ou indianos podem se reencontrar com um pedaço da origem de suas culturas e se deslumbrar – nas Casas da Pimenta espalhadas nas comunidades - com um trabalho de 5 mil anos de domesticação, seleção e uso.

Muito se fala, no mundo da gastronomia, sobre o desafio de não destruir tradições. Pouco sobre aquele, permanente, de construí-las. Um está vinculado ao outro. Só não se perde o que segue vivo, sendo construído, conhecido e compartilhado. O resto já era, mesmo que ilusoriamente protegido. Isso vale para florestas, povos, culturas. E pimentas.

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