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Comida

Quando o ouriço é muito, a santa tripa desconfia

Unidos perderemos.

Quando o ouriço é muito, a santa tripa desconfiaFoto:

O ouriço me venceu. Sempre alardeei ser grande fã da massa gosmenta e com cheiro de maresia, o oceano encapsulado nesse bicho espinhento. Quando aparecia em um cardápio, festejava e comia com todos aqueles rituais de gosto, sons e gestos de alegria.

Se um sushi de ouriço era bom, o que seria um jantar completo com muito ouriço? Êxtase absoluto. Foi onde me perdi, nesta crença na multiplicação da euforia gastronômica pelo volume de iguaria consumido. Aqui a tragicômica crônica de minha queda na realidade.

Gostava de ouriço, mas nunca tinha enfrentado um exército deles. Comia em sushi, um par, ou um temaki, ou um inteiro, na casca, com colher, o máximo de volume que já deglutira.

FOTO: Karoline Pettersen

A sucessão de pratos todos com ouriço foi catastrófica para o paladar. Eu deveria saber a lição de cor, mas ainda tropeço: nada que goste consumido em escala interminável fica bom. Sejam trufas brancas, caviar, seja chocolate, até mesmo batata frita, ou pão com manteiga. O sonho infantil de ingerir a casinha de pão de mel inteira sem que a mãe proíba é, exatamente, infantil.

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No jantar de apuração para a matéria, alguns pratos foram muito bons, admito. O onsen tamago (ovo cozido muito lentamente em água na temperatura termal) com uni foi uma combinação sublime. Tem o umami do ovo na sua textura de cozido longamente e servido morno, que envolve e completa o gosto penetrante do uni. Mais o dashi estupendo do chef Ken Mizumoto no Shin-Zushi, delicioso e profundo, que é uma dose extra de umami, tudo com um gole de Riesling por cima (leia a coluna Glupt! com os vinhos do jantar), com a acidez do vinho se ocupando do sal e seu adocicado abraçando o umami e a proteína do ovo. Um grande momento, e eu deveria ter parado nele.

LEIA MAIS: Uni, duni, tê

O outro duo ovo-uni, com acréscimo de ikura, ova de salmão e o ovo à milanesa, também funcionou, repetiu o pas-de-deux doce e ácido, gordo e magro, proteico e marinho que combina tão bem. Mas colocar uma pelota de ouriço em cima de tudo não é boa ideia. A preciosidade acabou virando um enfeite, como chantilly em sobremesas ou ketchup usado sem parcimônia em hambúrgueres, um artifício que cansa. E enfeite indigesto, como comer os noivinhos de massa que enfeitam um bolo nupcial. Quando apareceu no balcão uma vieira viva, sem uni, foi o máximo e roubou a cena, era o que precisava para um respiro. Cheguei em casa desorientado, sentindo-me pilhado, parecia ter bebido um litro de café, drogado e enfastiado como saído de uma potente feijoada lisérgica. Se fosse alérgico ao bicho teria ido para o hospital, e não ficado na cama, de olhos arregalados e atônito, delirando. Sobrevivi, mas com a difícil digestão e o inesquecível gosto que levou dois dias na boca – iodo, muito iodo. Foi como ter me afogado num mangue.

Virei um ser iodado, marcado pelo exagero, culpado por ter dizimado uma família de equinodermos e evocando diariamente o que viria a ser meu mantra: temperança é a esperança.

Nada como o consumo moderado e equilibrado do que se gosta para ampliar o prazer. E para continuar gostando, sem enjoar.

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Ouriço, para mim, agora só ano que vem.

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