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Comida

Úmbria, o segredo mais bem guardado da culinária italiana

Conheça a região ainda pouco explorada por turistas (e há pouco afetada pelo terremoto), rica em tradições gastronômicas e com valiosa produção artesanal salames, queijos, trufas, azeites e massas frescas

O Civitella Ranieri, castelo do século 15, se tornou um retiro para artistas - e para a cozinha tradicional da região. Foto: Chris Warde-Jones|NYTFoto: Chris Warde-Jones|NYT

The New York Times De Norcia, Itália

Norcia, uma cidadezinha da Úmbria, é pouco conhecida fora da Itália. Não é famosa pelas colinas como Siena, nem é destino religioso como Assis, mas na gastronomia nacional, seu nome vem ganhando um destaque cada vez maior. Há séculos é conhecida por seus açougueiros e a extraordinária série de carnes curadas que produz. Em agosto, porém, ampliou a fama tristemente por ser a cidade mais próxima do epicentro de um terremoto fatal. Como a maior parte da região, ela foi afetada, mas não transformada pela catástrofe. Os maiores danos ocorreram ao sul, em Amatrice e Accumoli, que foram destroçadas e, como Norcia, se situam no sopé da instável cordilheira dos Apeninos. San Pellegrino di Norcia, uma aldeia perto daqui, foi soterrada; muitos dos moradores continuam vivendo em núcleos de barracas (onde, como mostram as fotos, voluntários e cozinheiros unem forças para fazer macarrão e preparar molho à bolonhesa fresco). Comida boa pode parecer uma prioridade ridícula quando quase 300 pessoas perderam a vida e milhares estão sem ter onde morar, mas na Itália, é a melhor panaceia em caso de desastre.

O Civitella Ranieri, castelo do século 15, se tornou um retiro para artistas - e para a cozinha tradicional da região. Foto: Chris Warde-Jones|NYT

Os problemas mais imediatos dos produtores e chefs de restaurantes da província são logísticos, de acordo com Ramon Rustici, criador de porcos de Assis, já que muitas estradas vicinais continuam bloqueadas. E a maior preocupação é que o desastre impeça o público de ir à região para comer justo quando o gastroturismo local começa a decolar. Nacionalmente, a Úmbria é conhecida como o "cuore verde" da Itália, ou seja, seu coração verde, onde a paisagem ainda reflete as tradições antigas, tanto agrícolas como artísticas e espirituais. O resto do mundo, porém, pouco sabe sobre a região e sua culinária – seu azeite verde-dourado, seus tintos ricos, seus grãos diversos e o capricho incomparável de seus salames. Nas cidades medievais maiores como Bevagna, Assis e Todi, construídas nas colinas por condes e cardeais para exibir sua riqueza, há restaurantes com chefs profissionais que cozinham em um estilo moderno e criativo. Por exemplo, criam variações em cima da porchetta, o prato clássico regional suculento que consiste em carne de porco enrolada bem firme e assada com alho e ervas aromáticas, mas não parecem interessados em explorar outras opções da cozinha umbra. "Os jovens daqui se dispõem a ter aulas de cozinha japonesa, aprendem a fazer tapas, mas não querem nem saber como preparar os pratos regionais", lamenta Letizia Mattiacci, que dá aulas de culinária na cozinha de sua casa, nas colinas acima de Assis, onde estive várias semanas antes do terremoto. Ela faz parte da nova onda de cozinheiros, produtores, chefs e padeiros que trabalham para preservar e popularizar a culinária umbra, há muito ofuscada pela dos vizinhos. Como Parma, em Emilia-Romagna, a Úmbria produz um presunto maturado espetacular; como a província romana de Lazio, tem queijos de leite de cabra de sabor acentuado e muitos legumes; como a Toscana, se gaba de ter tradições antigas na produção de pães, azeites e vinhos e tem uma variedade impressionante de leguminosas. É a maior produtora de trufas negras da Itália, que são usadas regiamente quando na época (mas não têm o mesmo prestígio das do Piemonte). A pequena área da Úmbria – são 7.770 km² – pode ter limitado sua audiência global, mas a ausência de turistas ajudou a preservar a culinária tradicional.

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Muitos restaurantes, como o Centro de lu Munnu, em Foligno, comandado por três gerações da família Savini, ainda produzem clássicos como a massa com ragu de batata e vitela; escargot com molho de tomate e a torta al testo, um pão chato na chapa que combina perfeitamente com o salumi da região. O nome da casa significa "O Centro do Mundo" no antigo dialeto local, e se refere à crença antiga de que a Úmbria, por estar no cento da península italiana, é o centro do mundo. Os cozinheiros umbros tradicionalmente concordam em uma coisa: a massa fresca ali deve ser feita à base de farinha, água e mais nada. As mulheres se orgulham de produzir um macarrão macio e elástico sem ovos, graças a um movimento vigoroso de amassadura a que chamam "a culu mossu" (com o traseiro em movimento), que faz parecer que a pessoa está dançando samba. (Para os mais modernos e/ou modestos, o processador é um excelente substituto.) A Úmbria não tem mar; por isso são os legumes, verduras e frutas locais, cultivados e selvagens, que sempre formaram a base de sua culinária. "Em todo lugar você encontra urtiga, flores, aspargo, funcho", conta Romana Ciubini, natural da Úmbria e chef do Civitella Ranieri, enquanto prepara flores de sabugueiro para fritura. Variedades nativas antigas de leguminosas estão sendo redescobertas e cultivadas novamente. A maioria dos alimentos dali leva o selo DOP da União Europeia (certificando que o item é característico de um local específico e produzido segundo padrões tradicionais); estão incluídos nessa categoria: farro (trigo) de Spoleto, lentilhas de Castelluccio e diversos tipos de favas. A roveja, um tipo de ervilha cultivada durante séculos no sopé dos Apeninos, na divisa oriental da Úmbria, que mais tarde foi considerada extinta, foi redescoberta em 1998, quando uma mulher que cavava em um porão descobriu um vidro cheio delas, enterrado. Hoje é cultivada com cuidado, vendida a preços salgadíssimos e valorizada pelas propriedades nutritivas e o sabor terroso. "Era considerada comida de gente pobre, às vezes até de animais; agora é servida nos melhores restaurantes", se espanta Romana. Durante séculos, os agricultores umbros trabalharam como pequenos produtores de inúmeras variedades, mais preocupados em alimentar suas famílias e fornecer para os castelos e monastérios locais.

Massa fresca, com molho de aspargos e ervilhas refogados no vinho branco com pancetta. Só ingredientes locais. Foto: Chris Warde-Jones|NYT

No século XX, a tecnologia agrícola e de transporte inspirou muitas regiões da Itália a ampliar a escala de plantio, investindo em hectares e mais hectares de tomates, oliveiras e vinhedos para suprir a demanda internacional; a Úmbria, porém, manteve as propriedades de policultura familiares e a província acabou ficando para trás em termos de produção culinária, turismo e autopromoção. Ramon Rustici, um jovem produtor das colinas acima de Assis, diz que hoje a região está se beneficiando da manutenção da tradição. "Quando a situação ficou bem difícil para os produtores italianos, no período entre guerras e depois delas, as famílias conseguiam se sustentar sem ter que perder as terras", conta. Agora, sob os cuidados de três irmãos, a fazenda de criação de porcos Fratelli Rustici representa os valores modernos da sustentabilidade e garante o bem-estar animal. Até o terremoto gerou uma atenção positiva para a região: Filippo Gallinella, deputado local, pediu aos italianos que a apoiem dando preferência a produtos como o prosciutto di Norcia e as lentilhas Castelluccio para as "cesti natalizi", cestas lotadas de guloseimas tradicionalmente preparadas e trocadas na época de Natal. Se a Úmbria é mesmo famosa por alguma coisa, certamente é pelo salumi, produtos feitos a partir da carne de porco curada que usam praticamente todas as parte do animal. E, nesse caso, a atenção se volta toda para esta cidadezinha: Norcia, sinônimo de linguiças e salames – a ponto de o prato de qualquer restaurante ter um selo "al norcino", ou "alla norcina", para mostrar que é enriquecido com banha e muito sabor. O prosciutto e o salumi umbros são maravilhosos e muito valorizados no mercado interno, ou seja, pouca coisa chega a ser exportada. O pessoal local, como Romana, usa pequenas quantidades da iguaria, além de guanciale (papada) e pancetta (barriga) para dar mais sabor à tradicional "cucina povera", a cozinha dos pobres. Para o molho simples, o legume sazonal que tiver à mão é frito com azeite e salumi picadinho enquanto o nhoque é aferventado; a panela do refogado é deglaçada com vinho banco, o nhoque é escorrido e tudo é misturado, em fogo baixo. No Civitella Ranieri, Romana prepara o prato para os pintores, poetas, artistas de som e novelistas gráficos – que se beneficiam de uma refeição quente, caseira e saborosa que lhes é entregue diariamente no estúdio onde trabalham. "Preparar uma refeição do zero leva muito tempo, mas é o único tipo de comida que vale o trabalho", resume ela.

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