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Rasgando a fantasia

A harmonização de vinho com comida, naquele nível avançadíssimo, intrincado, é uma fantasia que eu já rasguei. Não estou negando a existência de casamentos mais acertados e prazerosos, não estou pregando o desprezo pelas melhores combinações. Mas coloco em questão as filigranas, os fru frus excessivos. Especialmente quande se trata de um longo menu. Para cada prato, um vinho; para aquela pequena porção, um outro... Precisa? Se for só para tirar chinfra, por passatempo, pelo prazer da pesquisa, ótimo. Se for para sofrer, para tratar como verdade absoluta, aí não. Acho que se temos na mesa um grande vinho, por que não fazer a refeição em torno dele? Basta não atrapalhar. É claro que não vou apreciar aquele tinto maravilhoso, especialíssimo, com camarões, sob o risco de ficar com gosto de parafuso (o de metal, não o de massa) na boca. Assim como não vou colocar aquele branco elegante e sutil para brigar com um cordeiro bem vermelho por dentro. Para mim - vou confessar -, quando se trata de combinar vinho e pratos, os erros são mais visíveis do que os acertos. Por outro lado, ficarei sinceramente na dúvida se um certo lagostim mostrará grandíssimas diferenças escoltado por um Chablis ou por um Sancerre. Mas certamente vou sugerir que fiquemos com o melhor entre esses dois brancos. Vejam bem: eu percebo e venero as diferenças entre os vinhos. E dou graças por termos a possibilidade de apreciar coisas diferentes, em horas diferentes. Estou me referindo ao barroquismo por vezes desnecessário das relações entre o prato e o copo. Uns bons anos atrás, quando eu comecei a levar mais a sério assuntos como comida e bebida, eu ouvia falar da harmonização como se fosse o caminho para uma espécie de nirvana gustativo. Uma iluminação, um estágio superior. E via referências a um tal terceiro gosto. Do tipo: combinar Sauternes com foie gras, cuja junção formaria um novo sabor, que se instalaria em outras regiões do cérebro e da alma... Já me emocionei (e me emociono) com pratos, com vinhos. Tive insights, fiquei fascinado... Mas não lembro de ter atingido tal estágio de elevação sensorial. Há também aquela velha questão dos menus-degustação, especialmente os mais longos. Existe sempre aquela necessidade de mostrar variações, de valorizar uma certa diversidade... Então, a amuse-bouche é servida com um espumante italiano; o primeiro prato, com um Torrontés argentino; e o próximo, com um Sauvignon Blanc neozelandês e por aí seguimos. Até que surge um determinado branco, o melhor deles, disparadamente... Por que não utilizá-lo nas demais etapas, desde que respeitando as compatibilidades? Só para nos deixar a sensação de que fomos mais felizes apenas por uns breves momentos? Certo, eu sei que, muitas vezes, se você está num restaurante, ou se você comprou um menu que já inclui a bebida, tem a questão do preço dos vinhos. Vão colocar coisas mais baratas na seleção. E, por isso, temos aquela sensação de montanha-russa a cada passo do jantar, "piora, melhora... piora, melhora...". Mas não é só isso. Tem aí também um viés em nome da diversidade - que é importante, mas que também não deveria virar ditadura. E em nome de uma micro-harmonização que não necessariamente busca o melhor, mas apenas o mais específico. Uma espécie de exibição de conhecimento, um tira-põe interminável de taças, tacinhas e taçonas. É bom, mesmo? Ou é só para mostrar uso profundo de manuais, guias e catálogos de harmonização? A diversidade, a meu ver, deveria nos proporcionar mais liberdade, e não o engessamento. Não a reprodução, num outro plano, da camisa-de-força das convenções excessivas, das codificações exageradas.  Eu confesso que me divirto mais juntando a melhor comida (a meu ver) com a melhor bebida (idem). Ao mesmo tempo que respeito quem só consegue comer, digamos, queijo broccio, da Córsega, com aquele determinado Condrieu... Mas desde que isso seja assumidamente um prazer pessoal, uma curtição. E que não seja vendido como dogma.

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