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Aventuras lácteas entre o Brasil e a França

Só queijo

Só queijo

Romeu, evite uma tragédia queijeira shakespeariana em Minas

Implorações ao governador de Minas para ajudar os queijos de leite cru selvagens e mofados que sofrem discriminações sanitárias no estado

Escrevo essa cartinha ao governador de Minas Gerais movida pelos ventos de esperança que nos trouxeram os dois últimos meses: em 17 de outubro foi comemorado o dia internacional do queijo de leite cru. Houve milhares de manifestações de apoio à microbiodiversidade queijeira no mundo inteiro.

Queijo e política sempre andaram juntos, ainda mais em Minas onde, desde que me entendo por gente, pelo menos meia dúzia de governadores já "salvaram" o queijo artesanal.  O objetivo, Romeu, é te sensibilizar para a situação crítica dos queijos de leite cru em Minas Gerais.

O governador de Minas Gerais Romeu Zema conhecendo o queijo da produtora Thaylane Guedes, da fazenda Bela Vista, no Mundial do Queijo do Brasil de Araxá em 2019. Foto: Johne Drone/SerTãoBras

Romeu, nós dois somos mineiros. É aí em Minas que bate o coração queijeiro do Brasil, embora eu esteja na França e esse blog seja publicado por um jornal paulista.

Ano passado a associação SerTãoBras, que eu dirijo daqui da Europa, realizou em Araxá, sua terra natal, o mais incrível concurso internacional de queijos do Brasil.

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Você nos deu a graça da sua presença e foi acolhido como Compagnon d´Honneur da Guilde Internationale des Fromagers. Lembra da cerimônia onde te entregamos o diploma dessa prestigiada instituição internacional e de presente uma gravata de vaquinhas e cabras da cor do seu partido?

Neste momento eu te disse que você pode contar conosco para a valorização do queijo mineiro. E que também gostaria de contar com você.

Romeu Zema, ao centro, na cerimônia que recebeu o diploma de Companheiro de Honra da Guilda Internacional dos Queijos. Foto: Johne Drone/SerTãoBras

Em seguida, nós jantamos juntos. Na mesa, havia uma cartilha da Epamig que falava de defeitos de queijos artesanais. E listava vários mofos como defeitos.

Eu vi isso e te falei: "Romeu, esses mofos são justamente o que eu tenho ensinado os produtores a cultivar nos cursos de cura que dou no Brasil. Com eles, os valores agregados aos queijos são astronômicos. Os consumidores mais viajados estão felizes de pagar mais caro por esse queijo mofado, para consumir em momentos especiais. E desde que o queijo Senzala da produtora Marly Leite, de mofo branco, ganhou a medalha super gold no mundial do queijo de Tours, na França, em 2017, queijo mofado virou definitivamente moda no Brasil". Lembra?!

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Queijo Senzala que ganhou medalhas ouro e super ouro no Mundial de Tours na França em 2017. Foto: Marly Leite/Queijaria Senzala.

 

Com a pandemia, tenho realizado meus cursos por internet. Semana passada uma aluna mineira me contou que vai receber o Selo Arte. Para isso, há 15 dias ela começou a lavar os queijos para tirar o mofo. Isso para quando os fiscais chegarem, para verificar se a lista de exigências foi cumprida, eles não encontrem nenhum tracinho de mofo. Ela também vendia o queijo mofado mais caro, agora ela vai gastar mais água e mais mão de obra pra vender um produto mais barato.

Ciência mineira valida mofos em queijos

Na França, o décret du fromage (decreto do queijo) explica (no capítulo 2, artigo 10 e parágrafo 5º) que podem ser adicionadas aos queijos culturas de bactérias, leveduras e mofos cuja inocuidade é demonstrada pelo uso (os mofos que dão naturalmente) ou novas culturas (os fermentos do comércio) avaliados pela Agência Nacional de Segurança Sanitária da Alimentação, Ambiente e Trabalho. Se você fizer uma busca pelo termo moisissure (mofo) nesse decreto, vai encontrar 19 ocorrências.

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No Brasil, nunca houve um caso provado de intoxicação alimentar, muito menos morte, por conta de mofo de queijo. Pelo contrário, professores da Universidade Federal de Lavras provaram recentemente que esses mofos naturais são parentes dos mofos europeus, adaptados ao nosso clima (leia o artigo da revista Profissão Queijeira com os detalhes desta pesquisa). Os fiscais do IMA se recusam a reconhecer essa pesquisa e alegam que as toxinas promovidas por certos micro-organismos são nocivas. Isso pode acontecer em outros alimentos, mas não em queijos. Pois o ambiente ácido de uma massa láctea não favorece a produção de toxinas. Isso é ciência, feita no nosso terreiro mineiro.

Zé Mário, produtor da Canastra, em protesto pela liberação dos mofos. Foto: Zé Mário/Acervo Pessoal

Esses pesquisadores fizeram milagre para realizar essa pesquisa, pois as verbas solicitadas ao governo nunca saíram, embora até o Pimentel, antes de você Romeu, fez pose em muitos jornais dizendo que esse dinheiro ia sair. Os professores usaram equipamentos e insumos que sobraram de outros projetos para atender produtores de queijo que pediram para identificar seus mofos. Puro espírito franciscano desses pesquisadores mineiros.

Outro dia escutei um funcionário da Secretária de Agricultura de Minas dizer que, caso os produtores insistam em cultivar esse mofos que crescem naturalmente em suas fazendas, eles vão precisar coletar as amostras por um laboratório autorizado e cultivar in vitro. Em seguida, o produtor precisa comprar seu próprio mofo do laboratório. É um processo caríssimo. Quem será que vai ficar rico com isso? O produtor ou as grandes empresas transnacionais de venda de fermentos? No Brasil não existe indústria de fermento nacional.

Quando eu conto isso para meu amigos queijeiros franceses, todo mundo fica abismado. Eles falam que o Brasil tem uma grande sorte que esse mofos ainda surgem naturalmente e devia protegê-los. Na França, são raríssimas as fazendas que ainda têm mofos naturais, justamente porque os cultivados pelas indústrias que foram acrescentados nas queijarias e fazendas dominaram o ambiente. Portanto, os mofos naturais não cresceram mais.

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Essa cartinha para implorar pelo direito ao mofo é uma questão de preservar a nossa microbiodiversidade. É lindo salvar o urso panda, o mico-leão-dourado, os animais em extinção. Mas tão lindo é salvar a flora selvagem dos nossos leites crus, que colonizam nossos intestinos e reforçam nossa imunidade.

Outros pesquisadores têm alertado para os perigos que correm nossos queijos pelo excesso de regras sanitárias. É o caso do professor José Manoel Martins, coordenador do Curso Superior de Cie?ncia e Tecnologia de Latici?nios do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais - Campus Rio Pomba. Ele tem chamado a atenção para mostrar que os queijos que ele avalia nas suas pesquisas, feitos com boas práticas, muito amor e capricho, que são queijos excelentes e deliciosos, mesmo assim não passam nos critérios atuais da legislação. Olha o que ele disse nessa Tribuna.

Muita esperança no nosso futuro queijeiro

Romeu, já pensou quantos novos produtores vão começar a existir enquanto cidadãos, vão pagar impostos e vão ter sua auto-estima elevada se algumas poucas  mudanças forem implantadas? Algumas sugestões:

  • Aceitar e reconhecer pesquisas, como a patrocinada pela cooperativa do Serro que valida seu queijo vendido com 10 dias de cura. Foi recusada pelo IMA.
  • Descentralizar a fiscalização: que as próprias associações possam realizar o auto-controle das instalações e modos de fazer dos seus membros.
  • Focar a fiscalização mais no produto final do que nos detalhes dos meios de produção. Se o queijo é bom, se os exames dos queijos são bons, deixe ao produtor a criatividade dos meios...
  • Democratizar os laboratórios: temos somente um laboratório certificado pelo IMA em Minas Gerais.
  • Que a ouvidoria de reclamações no Instituto Mineiro de Agropecuária não termine sempre em pizza, como foi o caso de uma fiscal que acusou o queijo "premiado na França" de ser o causador das intoxicações de janeiro de 2020 ... que no final descobrimos que foi causada por cerveja. Ela ficou impune.

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Se a SerTãoBras começar a ser convidada para as reuniões do queijo artesanal do governo mineiro, junto com o Sebrae e as outras instituições sempre tão dispostas a salvar o queijo, tenho certeza que podemos sugerir mais soluções. Mas o que já ouvi de fiscais concursos do IMA é que não adianta, entra governador, sai governador, eles continuam lá...

Um último exemplo de chorar

Nossa associação SerTãoBras procura ajudar não só os produtores mais esclarecidos e com condições de pagar cursos e viagens internacionais. Nosso foco principal são os produtores mais pobrezinhos. Nossa fama é de ser uma associação comunista, mas eu prefiro dizer que somos uma associação franciscana.

Os mais pobrezinho são os mais desconfiados. Se você perguntar pra eles quem são seus inimigos a resposta é em primeiro lugar o Ibama, principalmente pelas multas ambientais no parque da Canastra, que já faliram muita gente. Em seguida vem o IMA. Eles têm pavor de sair da clandestinidade, com medo de enfrentar fiscais arrogantes que impõe suas regras e podem fechar suas queijarias sem piedade. Exemplo não falta.

Para acabar essa cartinha, cito o caso do seu Nivaldo e dona Maria, produtores da Serra da Canastra. Sua família faz queijos há mais de cinco gerações, ele nem se lembra desde quando. Visitamos esse produtor em 2010. O menino do vídeo abaixo é uma gracinha, filho do casal. Eu perguntei se ele queria seguir a carreira do pai. Envergonhado, disse que não, não queria essa vida de sofrimento, de vender produto escondido, queria ser eletricista.

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Se ele não conseguir estudar para ser eletricista, vai ser produtor clandestino por falta de opção. A gente poderia até sugerir que ele entre em um dos programas do Sebrae para virar "empreendedor de queijo". Mas está tão longe essa possibilidade... Porque para ser empreendedor, precisa de ser expert em rede social, só pensar em trabalho 24 horas por dia, saber vender, embalar, criar campanha de marketing, ter dinheiro para investir, ter dias livres para participar de reuniões institucionais, tudo tão difícil pra ele.

Eu só queria que ele tivesse paz para fabricar seu queijo. Que o mundo inteiro lá fora sustentasse essa paz. E que ele tivesse orgulho de ser produtor.

É isso Romeu. Romeu e Julieta são a peça mais conhecida de William Shakespeare. Mas em Minas eles são mais populares como goiabada com queijo mesmo. Nesse caso, o Romeu é o queijo... Acho que você tem tudo para evitar essa tragédia mineira.

Sigo seus posts no facebook. É a sua abertura e franqueza nesses posts que me motivaram a te escrever. Se as fronteiras continuarem abertas quero passar Natal com a família em Belo Horizonte. Quem sabe tomamos um café, com um bom queijo e uma goiabada de Ponte Nova, para combinar entre outras coisas, como vai ser o próximo Mundial do Queijo do Brasil?

 

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