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Bebida

Porto, champanhe e 'Bordô'

O vinho fortificado português era o favorito da população. Além dele, também se consumiam vinhos de mesa, brancos e tintos, portugueses e, principalmente, franceses

Fig. 9 — O cálice de vinho do Porto selava o bom menu ao lado de frutas, pudim de laranja e arroz de leiteFoto:

Por Guilherme Velloso

Não por ser segunda-feira, dia de trabalho. Mas é pouco provável que se tenha comprado ou consumido muito vinho na capital da Província de São Paulo no dia 4 de janeiro de 1875. Beber vinho era hábito pouco difundido na época, restrito à nobreza e aos integrantes da alta burguesia que começava a surgir com o desenvolvimento, sobretudo, das lavouras de café. Estima-se que, naquela data, a população da cidade que hoje responde pela maior parcela do consumo brasileiro de vinhos finos somasse, se tanto, pouco mais de 31 mil habitantes (para se ter uma comparação, três anos antes a população do Rio de Janeiro, capital do Império, já era quase dez vezes maior). Se algum deles bebeu vinho naquele dia, é provável que tenha sido um cálice de vinho do Porto ao final da refeição.

Sabe-se que nessa época o Porto já se havia incorporado aos hábitos alimentares de pelo menos certo extrato da população que vivia nas grandes cidades brasileiras, notadamente o Rio de Janeiro, já que São Paulo, além de bem menor, padecia de sua localização geográfica, “distante” do litoral. Em As Barbas do Imperador, livro em que traça um detalhado perfil do imperador d. Pedro II, inclusive dos hábitos e costumes vigentes ao longo de seu reinado, a historiadora Lilia Schwarcz observa que na década de 1850 “o costume de comer fora começava a estabelecer-se”.

Fig. 9 — O cálice de vinho do Porto selava o bom menu ao lado de frutas, pudim de laranja e arroz de leite 

Segundo ela, almoçava-se em geral às 10 horas e jantava-se às 4 da tarde uma boa refeição, composta por “sopa, bife, arroz com galinha, espinafre, marmelada e doce de figo”. Completava a refeição, no relato de Schwarcz, um bom “caldo de sustância” (preparado à base de legumes e galinha escaldada), “além do vinho do Porto, das frutas, do pudim de laranja ou do arroz de leite de canela, que selava um bom menu”. Como não há menção a outros vinhos, supõe-se que o Porto pudesse acompanhar toda a refeição, ainda que harmonizações com sobremesas como a marmelada, o doce de figo e o arroz de leite de canela pudessem ser consideradas impecáveis.

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Portugal e França. Desde a abertura dos portos “às nações amigas”, em 1808, com a chegada de d. João VI, o Brasil passou a receber vinhos não apenas de Portugal, até então nosso fornecedor exclusivo, mas também de outros países. Só que, de início, seu consumo destinava-se principalmente à família real e ao grande número de nobres que com ela se instalaram no Rio de Janeiro. E, logo, da burguesia que floresceu com o crescimento da cidade e da jovem nação. Além de Porto e Madeira, também se consumiam vinhos de mesa, brancos e tintos, portugueses e, principalmente, franceses. No caso desses últimos, registros da época mostram que os vinhos de Bordeaux e os champanhes eram presença constante nas listas de compras da casa imperial brasileira.

Fig. 10 — Dos favoritos da família real, o Château Margaux estava entre os vinhos servidos no Baile da Ilha Fiscal

Em seu livro Presença do Vinho no Brasil, talvez o único editado no país com esse enfoque, Carlos Cabral, conhecido estudioso de vinhos e maior especialista brasileiro em vinho do Porto, reproduz inúmeros registros de compras de vinhos (e destilados) destinados ao consumo da família real e de seus servidores diretos. Por eles, ficamos sabendo, por exemplo, que o estoque previsto para o mês de abril de 1838 incluía 80 garrafas de “vinho de Lisboa”, presumivelmente tinto, 45 de “vinho do Porto”, 25 de Bordeaux, 20 de Madeira e 67 de champanhe. No ano seguinte, o recibo de venda de vinhos de um comerciante para o palácio imperial lista, entre outras, garrafas de Bordô (sic), de vinho “Medoc” e pelo menos uma do (château) “Laffitl” (Lafite).

Ou seja, a hierarquia de Bordeaux já estava claramente estabelecida há mais de 150 anos mesmo num mercado periférico como o Brasil: uma única garrafa do Lafite era vendida praticamente pelo mesmo preço que quatro de Medoc. Desse recibo, consta ainda uma garrafa de um vinho chamado “Riomiareu”, que Cabral identifica como sendo um Romanée, por preço ainda maior que o do Lafite. Numa compilação das compras feitas para a mesa do imperador e seus acólitos no período de 1838 a 1889, quando foi proclamada a República, o château Margaux também é citado em vários anos.

Carta do baile. O consumo de vinhos nas mesas da nobreza e da alta burguesia brasileiras se tornaria mais comum nas últimas décadas do século 19, impulsionado, inclusive, pela crescente aristocracia rural que enriqueceu com o café, no Rio e em São Paulo. Ironicamente, um dos melhores testemunhos dos padrões de consumo vigentes na época, pelo menos no que diz respeito aos vinhos, é o cardápio do famoso Baile da Ilha Fiscal, em 9 de novembro de 1899. Nele, foram consumidas nada menos do que 258 caixas de vinho e 300 de champanhe, num total de 39 rótulos diferentes. Representando os franceses, por exemplo, grandes Bordeaux, como os Châteaux Margaux, Lafite, Leoville e Pontet-Canet, mas também borgonhas, como Chambertin, Pommard, Nuits-St-Georges e Romanée. Isso sem contar, obviamente, o Château d’Yquem para os doces, que também poderiam ser escoltados por um Porto (safra 1834), um Madeira, um Tokay ou um Vin de Constance, da África do Sul, tido como o favorito de Napoleão. Quem quisesse ficar apenas no champanhe poderia escolher entre Cristal da Roederer, Veuve Clicquot Ponsardin e Heidsieck Monopol. Em seu livro, Cabral estima que, a preços de hoje, foram gastos aproximadamente US$ 250 mil com vinhos. Não surpreende que a República tenha sido proclamada apenas seis dias depois da festança.

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>>Veja a íntegra da edição do Paladar de 22/1/2015

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