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Comida

A história que os utensílios contam

Por trás das torradas da manhã e do bife grelhado da noite escondem-se histórias. Como a da torradeira elétrica com molas, que permite ao pão saltar morno e crocante, patenteada em 1921 por Charles Strite, em Minnesota. Ou a do garfo e faca de aço inoxidável, que permitem cortar a carne e levá-la à boca – gesto que começou restrito a nobres europeus no século 18 e, depois de generalizado, mudou até a forma das arcadas dentárias de todo mundo.

A história que os utensílios contamFoto:

Em Pense no Garfo, lançado este mês no Brasil, a escritora britânica Bee Wilson desvenda, nos objetos e utensílios de cozinha – dos mais prosaicos aos mais modernos –, a história de como cozinhamos e comemos.

Em narrativa fluida, mas nem por isso menos rigorosa na pesquisa, a autora enche o prato do leitor com curiosidades saborosas e, ao mesmo tempo, proporciona uma reflexão de fundo sobre o sentido de cozinhar e comer. Em conversa com o Paladar por e-mail, falou sobre o livro e outros temas da gastronomia hoje.

Bee Wilson, autora de ‘Pense no Garfo’, agora lançado em português. FOTO:Jay Williams/Divulgação

O que levou você a escrever um livro sobre equipamentos de cozinha e não sobre ingredientes e receitas?

Quase todos os livros de comida têm como foco ingredientes. Entendo por quê. O ovo é um objeto mais intrigante que um batedor de ovo. Além do que, não comemos batedores de ovo. Mas meu livro tenta mostrar que quando esquecemos os utensílios de cozinha, perdemos metade da história da comida. Podemos mudar quase tudo em um ingrediente – o sabor, a textura, as conotações culturais–, dependendo de como escolhemos prepará-lo. Quanto mais pesquisei o assunto, mais percebi que o equipamento de cozinha funcionam como uma janela para as obsessões humanas. Até mesmo algo aparentemente muito simples, como um garfo, tem uma história. Por séculos, ninguém na Europa queria usar garfos – por que você ia querer botar uns dentes de metal na sua boca junto com a comida? A exceção era a Itália, pois objetos com dentes são ideias para pinçar massas.

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No livro, você escreve sobre diferentes tradições culinárias entre diversos países. Em que medida equipamentos de cozinha podem informar sobre a cultura de uma nação?

Equipamentos de cozinha dizem muitíssimo sobre a cultura de uma nação. Dizem-nos quais comidas são percebidas como importantes e quais são os recursos disponíveis para cozinhá-las. Sei que no Brasil um dos mais amados objetos são as panelas de pressão e podemos dizer que isso reflete, entre outras coisas, uma necessidade de economizar recursos, um desejo de não ficar tanto tempo numa cozinha quente, uma paixão por feijão.

Ou, então, olhe para as facas. Há maneiras inteiramente diferentes de entender as facas na China e na França. Na alta cozinha francesa, há diversas facas específicas para cada uma das tarefas na cozinha, das mirradas facas de ostra às longas facas de corte. Mas na China, cozinheiros chegam a resultados igualmente precisos usando apenas uma faca para tudo: uma grande faca que parece um cutelo, chamada “tou”. O ponto é que, na Europa, estamos interessados em mostrar facas como um objeto de status, enquanto na China, todo o trabalho de corte é feito meio que escondido no cozinha.

Na história da comida, há um ponto de virada determinante, no que diz respeito à tecnologia de cozinha?

Há tantos! Um muito importante foi o advento da panela, há uns 10 mil anos atrás. Para mim, isso marca o início da cozinha, o ato de cozinhar, pois foi o primeiro momento em que cozinheiros puderam misturar sabores em vez de apenas esquentar as coisas no fogo. Outro momento crucial foi a cozinha a gás, que começou nos anos 1880 na Grã-Bretanha. Ser capaz de ligar e desligar a chama quando se queria foi um extraordinário progresso. Liberou as pessoas do trabalho demorado e penoso de manter o fogo aceso, que até então, era a principal atividade humana todos os dias. Há algum item de cozinha que nunca ficará obsoleto?

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A colher de pau, talvez? Algo que percebi enquanto escrevia é que os itens de cozinha não sobrevivem em razão do quanto são úteis. Tem a questão também de como eles fazem o cozinheiro se sentir enquanto cozinha. A colher de pau é o mais adorável de todos os utensílios. É tão reconfortante tê-la à mão quando você remexe um molho ou um risoto. Também acontece de ser uma boa peça de engenharia pois a madeira não conduz calor como o metal, então as chances de você se queimar são consideravelmente menores.

A Tecnologia na cozinha é muitas vezes pensada pela grande indústria, usadas por profissionais, para só depois chegar ao grande público. Você acha que invenções mais recentes, como as máquinas sous-vide, serão tão populares como o micro-ondas?

Sei que muitos chefs dizem que a máquina de cozinhar sous-vide (a vácuo) será a próxima grande revolução nas cozinhas caseiras. Mas eu não vejo isso acontecendo. A grande vantagem do sous-vide é que oferece uma incrível precisão. Eu usei uma e concordo que pode render resultados fantásticos: carne muito macia e vegetais com sabor intenso e vivo. Mas tem desvantagens: é um enorme e pesado objeto que gera um monte de lixo plástico, pois a comida é fechada a vácuo em pacotes antes de ser cozinhada. Acho que cozinheiros domésticos não são tão ligados em precisão de cocção como chefs de restaurantes. Os utensílios que tendemos a adotar são os que se adaptam à nossa vida como ela é. E, para mim, sous-vide tem uma outra enorme desvantagem: você não sente o cheiro da comida enquanto ela é preparada, e assim boa parte da alegria de cozinhar se perde.

Qual o impacto da chamada cozinha tecnoemocional criada por Ferran Adrià? O impacto foi enorme nas cozinhas de restaurantes. Adrià é provavelmente o maior inventor da cozinha profissional desde Escoffier. Ele imbuiu os chefs de uma maravilhoso senso de experimentação e uma ideia de que regras e paradigmas podem ser quebrados. Por que não congelar algo em vez de fritá-lo? Ao mesmo tempo, esse tipo de cozinha é mais exato e preciso do que jamais se pensara, graças a toda a ciência usada por Adria. Acho que esse impacto, no entanto, não foi ainda sentido nas cozinha domésticas, com exceção das ferramentas de medidas. Termômetros digitais estão se tornando comuns e cada vez mais populares, o que elimina muito do trabalho de adivinhação e “chute” que faz parte da rotina da cozinha.

Em que ponto estamos da evolução tecnologia na cozinha? Há muito por descobrir?

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O mais instigante quando se fala de cozinha é que nunca sabemos o que virá. E, frequentemente, novas descobertas mostram-se inúteis. Na minha opinião, as modernas panelas antiaderentes são ferramentas muito menos eficazes do que as ditas antiquadas frigideiras de ferro fundido, aço ou alumínio.

A área em que a inovação seria muito interessante hoje seria desenvolver mais formas de cozinhar minimizando o gasto de energia, diante de um futuro com escassez de recursos. Talvez pudéssemos olhar para inovações do passado como inspiração. Na Era Vitoriana (século 19) experimentou-se equipamentos de cozinha movidos a água, algo que pouco se desenvolveu desde então. Uma mulher chamada Mrs. Marshall inventou uma incrível máquina a manivela que fazia sorvete em 5 minutos – muito melhor que as máquinas elétricas que são vendidas hoje.

Experimentamos hoje uma espécie de culto ao artesanal. Muitos querem moer o próprio café, fazer o próprio pão. Seria essa tendência oposta ao uso de equipamentos hi-tech na cozinha?

Tantas coisas nas nossas vidas viraram virtuais. É profundamente reconfortante ir para a cozinha e agarrar objetos reais e usá-los para fazer comida de verdade. Esse culto ao artesanal é parte de uma reação contra a dominação da tela. Mas isso não vai tão longe por si só. Moemos, sim, nosso próprio café – é tão prazeroso sentir o perfume do grão –, mas não conheço ninguém que usa um pilão para triturar farinha ou açúcar em casa. Algo notável em nossas cozinhas é como o antigo e o novo estão lado a lado. Talvez sovemos nossas massas de pão com as próprias mãos, como nossos antepassados. Mas medimos a farinha em balanças de precisão digitais e assamos o pão no forno elétrico.

Pense no GarfoAutor: Bee WilsonEditora: Zahar (344 págs.)Preço: R$ 54,90

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>> Veja a íntegra da edição do Paladar de 3/7/2014

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