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Comida

A paella valenciana contra-ataca

Quando um ‘fundamentalista’ vai fazer o prato longe de casa, leva água de Valência


Variação. Essa é a paella marinera. FOTO: Alex Silva/AEFoto:

Por Dias Lopes

Um grupo de chefs espanhóis virou a cozinha de cabeça para baixo, anos atrás, ao inventar a gastronomia molecular, que desconstruiu ou reinterpretou clássicos do seu país. Agora, outros chefs se empenham em proteger as receitas originais. Há um movimento em favor da autenticidade da paella valenciana, por exemplo, o prato mais emblemático da Espanha. Sustenta que a preparação tem sido desfigurada no país e pelo mundo afora.

Variação. Essa é a paella marinera. FOTO: Alex Silva/AE 

Seu líder é Rafael Vidal, chef do restaurante Levante, da cidade de Benisanó, na Província de Valência. Primeiro ele percorreu inúmeros pueblos da região, nos últimos oito anos. A seguir, propôs a padronização da receita da paella valenciana. Descobriu que sua composição varia, mas identificou dez ingredientes comuns no prato. “São o arroz, azeite, água, sal, açafrão, frango, coelho, vagem, garrofón (feijão-verde) e tomate”, diz. O pimentão foi descartado. “Nem todos os pueblos o incorporam”, explica Vidal.

Outra constatação do chef é que, no passado, em vez da carne do coelho usavam a de um pequeno mamífero roedor que vive à beira dos córregos, rios e lagoas, alimentando-se de gramíneas. Ainda pode ser encontrado na zona da Albufera – a laguna costeira da Espanha, 15 quilômetros ao sul da cidade de Valência, contornada por imensas plantações de arroz, que se acredita ser o berço da paella.

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Seu nome espanhol assusta: rata de marjal. Mas, por ser alvo da caça e ter interesse gastronômico, convém não considerá-lo parente do animal que infesta os subterrâneos urbanos, tabu alimentar em várias culturas. No Brasil, consumimos as carnes de capivara e paca, mamíferos roedores que também vivem à beira d’agua. Já o frango, da mesma forma que o coelho, não era utilizado antigamente. Ocupou o lugar do pato selvagem.

A paella foi criada pelos camponeses da Província de Valência nos séculos 15 e 16. Quando saíam de madrugada para o trabalho, levavam arroz, azeite, sal e uma panela redonda, ampla e rasa, com alças. Era a paella – e não paellera, como muitos falam. Ainda de manhã, caçavam os animais e colhiam os legumes da estação para o almoço. Só mais tarde incorporaram o tomate.

A invenção valenciana se diversificou ao migrar para outras regiões. Surgiram a paella marinera, à base de peixe e frutos do mar; a mista, com peixe, frutos do mar e carnes; a negra, que leva tinta de lula. Apareceram algumas com verduras, alcachofra, fígado ou morcela. Vidal, que no mês passado esteve em Washington, nos EUA, para um festival da paella valenciana organizado pelo colega asturiano José Andrés, surpreendeu-se ao encontrar o prato feito com batata, abacate e até hambúrguer. Em 2011 ele já havia preparado ali uma paella valenciana para 500 pessoas. Fez tanto sucesso que não sobrou sequer o socarrat – a crosta marrom e crocante formada pelos grãos que pegam no fundo.

Mas a padronização da receita enfrenta dificuldades. “O ideal seria conseguir o selo protetor da denominação de origem”, afirma Vidal. “Entretanto, isso parece impossível, pois os ingredientes não são iguais em todos os pueblos, nem originários de uma mesma zona. Uma saída será qualificá-la de paella tradicional, diferenciando-a pelo uso do arroz com denominação de origem de Valência.” O chef levanta uma questão importante. O arroz é o ingrediente que os espanhóis mais apreciam no prato. Os demais são valorizados, é claro. Porém, destinam-se sobretudo a transferir sabor ao arroz.

O ponto de cozimento também é levado a sério. O arroz deve ficar inteiro, seco e solto. Passando do ponto, os grãos se rompem, desperdiçam o amido e deixam a textura pastosa.

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Enfim, os valencianos ainda dão bastante importância à água do cozimento, tanto ao volume quanto à procedência. Muitos sustentam a superioridade da que corre em sua terra natal. Por isso, sempre que um desses fundamentalistas vai fazer uma paella longe de casa, carrega uns litros de água e se acha o tal.

Veja todos os textos publicados na edição de 18/10/12 do Paladar

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