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A vida (e a morte) de Brownie

Após acompanhar toda a trajetória de um boi por 31 meses, o aproveitamento total de sua carne é uma forma de mostrar que nem sua vida nem sua morte foram em vão

Na semana passada – vencendo certa relutância da família e até de mim mesmo – resolvi repassar o comando: é hora de insensibilizar e abater o Brownie. Acabou assim, pelo menos por enquanto, minha breve experiência de pecuarista. Volto ao desafio de ser apenas cozinheiro.

O boi Brownie, que ficou com a mãe até se soltar sozinho no pasto, em ambiente certificado Foto: Roberto Smeraldi|Estadão

O Brownie foi meu primeiro boi. E não foi um boi qualquer. Já pelo sangue, cosmopolita: 50% de wagyu japonesa, 25% de angus australiano, 25% de nelore brasileira. Mistura dosada pelo visionário criador Ricardo Sechis, que eu costumo definir como “escultor de boi”, após anos na busca de um equilíbrio ideal tanto no crescimento do animal quanto no seu futuro produto, a carne.

Brownie teve 31 meses de vida muito boa. Ficou com a mãe até se soltar sozinho no pasto, em ambiente certificado de acordo com os padrões socioambientais mais avançados do mundo (pela Rainforest Alliance) com água pura de nascentes protegidas pela mata nativa. Além de receber os cuidados das melhores práticas de bem-estar animal, de vez em quando recebia visitas antiestresse do próprio Ricardo, que também atua como psicólogo de rebanho.

Paleta. Versão para grelha. Foto: Roberto Smeraldi|Estadão

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Em meados do ano passado, deixou o pasto para um spa bovino ao ar livre, onde era borrifado com água e protegido do sol, comendo à vontade amendoim, milho cultivado com o adubo orgânico da própria fazenda e farelos variados. Uma ração que, de acordo com estudos recentes da academia, leva a um inédito e surpreendente equilíbrio, na carne, entre ácidos graxos ômega 3 e ômega 6: praticamente o sonho de um cardiologista. O bem-estar e a harmonia com a equipe o levaram a obter, em abril, a nota máxima (5) em docilidade. Junto com a alimentação, isso contribuiu para um crescimento considerado excepcional: atingiu 920 quilos!

Agora, é comigo. Quando você acompanha o milagre que se dá na fazenda, quando você compartilha o orgulho dos que cuidam do animal, quando você se anima a cada foto ou a cada visita com a explosão dos músculos e o brilho do pelo, aí começa a entender o tremendo privilégio e a responsabilidade que é preparar esse gigante, todo, para virar, um dia, seu alimento.

Usarei assim cada grama de seu corpo, inclusive gordura, cartilagens, tendões e ossos, para estudar, pesquisar e aprender como podemos maximizar nossa capacidade de aproveitamento de um animal de qualidade, e logo compartilhar esse aprendizado. Por isso a desossa foi realizada com critérios diferentes daqueles convencionais, para espanto do frigorífico. Usarei o cru e o cozido, a cura e a maturação, o cutelo e o moedor, a força da brasa e a delicadeza da baixa temperatura, até extrair a última gota de colágeno e derreter a última fibra.

Patinho. Pronto para curar e virar bresaola. Foto: Roberto Smeraldi|Estadão

Ter um boi já me fez rever conceitos e a experiência impactou a família toda. Só isso já valeu a pena. Mas acho que vai me obrigar a melhorar bastante na cozinha e contribuir para que outros também melhorem. 

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Estou louco para começar, mas preciso respeitar a primeira regra que pretendo testar: antes mesmo de uma maturação mais avançada, de acordo com cada peça, esperar logo dez dias para deixar a enzima calpaína desempenhar plenamente seu efeito de quebra das proteínas. Valeu, Brownie. Nem sua vida nem sua morte terão sido em vão.

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