Por Débora de Carvalho Pereira*Especial para o Estado
Na primeira segunda-feira de fevereiro, um salão do hotel Belle Vue, em Lille, norte da França, se arrumou todo para receber dez peças de queijo. Os aromas que tomaram conta do espaço eram típicos da fromagerie francesa, mas os queijos eram brasileiros, produzidos na Serra da Canastra. Eles foram maturados na França, numa experiência que durou cinco meses, protagonizada por dois famosos afinadores: Jean-François Dubois, da Bons Pâturages, e Philippe Armand, da La Finarde.
A experiência começou em setembro, quando entreguei os queijos a eles. Vivo na França, mas trouxe na mala alguns queijos brasileiros para um simpósio do Slow Food e incluí no lote peças extras para serem afinadas pelos especialistas.
Afinador de queijo é o profissional que usa diferentes métodos e técnicas para maturar a peça. Sabe quando o queijo está pronto para o consumo, se deve potencializar ou amenizar os aromas, aumentar ou reduzir a acidez e se o queijo deve ser contaminado com alguma bactéria ou fungo. Enfim, é o profissional que deixa o queijo pronto para o consumo.
A ideia era testar diferentes métodos para, posteriormente, essas técnicas serem testadas ou aplicadas no Brasil, onde a cura do queijo ainda é um campo a ser explorado.
FOTO: Débora de Carvalho Pereira/Estadão
Eles ensaiaram formas de cura em diferentes ambientes e com tratamentos especiais. A degustação evidenciou o grande potencial de maturação e cura dos queijos, que apresentaram resultados bem variados de gosto, textura e aroma.
Os dois queijeiros têm butiques a menos de 50 metros de distância, são concorrentes há mais de 20 anos e nunca tinham se falado. Inicialmente desconfiadíssimos um do outro, sem querer detalhar as técnicas, os afinadores terminaram o evento num relaxado bate-papo sobre consumidores de Lille.
Armand é mais desconfiado que mineiro. Tem medo que roubem seu método de maturar em bebida alcoólica (no canastra usou cachaça). E só se convenceu a falar um pouco sobre a técnica quando soube que o texto seria publicado apenas no Brasil.
Caves. Os dois queijeiros receberam queijos iguais, elaborados pelo mesmo produtor, com leite cru, e com uma semana de idade – exceto um, que foi para Armand com um mês de cura.
Jean-François Dubois curou as peças em duas caves subterrâneas naturais e usou também três salas artificiais. Ele trabalha sobretudo com umidade saturada, entre 85% e 95%, o que permite o desenvolvimento de ácaros e bactérias, como o mucor, que proporcionam cascas especiais aos queijos. Ele também trabalhou uma das peças isoladamente, para conhecer o efeito da maturação apenas com bactérias brasileiras.
Philippe Armand amadurece os queijos apenas em caves naturais, no subsolo de sua butique localizada na área central de Lille. Mantém menor umidade – em torno de 60% a 70% – e tem o hábito de curar queijos com bebidas alcoólicas, o que lhes confere sabor bem peculiar. Seus métodos são mais viáveis para a produção no Brasil: por não exigir umidade saturada, a cura pode ser feita em uma geladeira, a 12ºC.
É verdade que esperar os queijos curarem encarece o produto, mas torna o gosto do queijo muito mais complexo que o de queijos frescos ou meia cura. No caso do canastra, a cura acentua o gosto picante, o aroma fica mais intenso e a textura varia conforme a umidade do ambiente.
JEAN-FRANCOIS DUBOIS
Umidade: 85%Temperatura: 12°C
Meio lá, meio cá
Método: sobre tábua de pinheiro, virado uma vez por semana. Como ficou: não muito macio, nem muito acentuado no paladar. Apresentou defeitos na casca, que podem ser de fabricação.
O bolor não pegou
Requeijão pornô
O melhor de todos
Casca com ácaro
PHILIPPE ARMAND
Umidade: 70%Temperatura: 12°C
Algo pecorino
Banho de cachaça
Canastra cheese
Embebido
Em filme plástico
Nossas bactérias têm futuro
* O Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de produtores de queijo (atrás da Índia, EUA, China e Paquistão).
* 300 mil peças de queijo são produzidas todos os dias em Minas Gerais.
* Há 30 mil produtores de queijo de leite cru (grande parte deles clandestinos) em Minas. Na França, há entre 7 e 8 mil ateliês de fabricação artesanal.
A valorização da cura de queijos no Brasil é recente, enquanto na França as técnicas têm sido aperfeiçoadas há pelo menos um século. Em Minas Gerais, o reconhecimento da diversidade dos territórios e dos produtos está começando, mas na França cada pedaço de terra já tem suas indicações geográficas delimitadas e os produtos são catalogados. Mas a comparação da produção entre Brasil e França traz uma surpresa: só em Minas há mais que o triplo de produtores de queijo de leite cru do que na França inteira.
A diversidade de bactérias dos queijos sul-americanos chama a atenção dos laboratórios de pesquisa franceses, que já esgotaram a sua diversidade natural, uma vez que na França a maioria dos fermentos é padronizada e produzida por grandes empresas. O estudo das bactérias da Serra da Canastra pode resultar em novos fermentos.
O Brasil já é o quinto produtor de queijo no mundo, mas continua importando. Em janeiro de 2014, a Revue Laitier Française mostrou que a exportação de queijos franceses para o País dobrou: de 800 t em 2011 para 1.600, em 2013.
* É jornalista, trabalha na revista especializada Profession Fromager, em Lille, e faz parte da associação Sertãobras, que busca incentivar a legalização de queijos produzidos com leite cru.