PUBLICIDADE

Comida

Do couro veio a correia, do farro veio a farinha

Por Dias Lopes


(Divulgação)
Foto:
(Divulgação)  

Quando partiam para a conquista do mundo, as legiões romanas incluíam entre suas provisões grandes quantidades de farro – o primeiro tipo de trigo cultivado pelo homem. Com os grãos triturados dessa planta herbácea da família das gramíneas, os soldados preparavam três alimentos fundamentais: pão, focaccia (libum) e polenta (puls), que ainda não levava a farinha do milho americano introduzido na Europa após a descoberta de Colombo.

Eram comidas rústicas, tanto nos ingredientes como na elaboração, mas de elevada importância nutricional. A preparação menos apetecível ao paladar contemporâneo seria o puls. Resultava do cozimento em água e leite da farinha do farro mexida constantemente, acrescida de miolos de porco e finalizada com vinho às vezes misturado à água do mar, pimenta moída e sal grosso. Arre!

O farro começou a ser consumido no Neolítico, o período que vai do décimo ao terceiro milênio a. C., no qual o homem se sedentarizou e desenvolveu a agricultura. Passou a interessar aos habitantes da península itálica no século 7º a. C., e foi o primeiro cereal plantado na antiga Túscia (região entre a Toscana e a Úmbria, na qual vivia o povo etrusco) e no Lácio, onde se encontra Roma.

Na Antiguidade, existiam do Mediterrâneo ao Cáucaso três tipos de farro: o pequeno (Triticum monococcum), o médio (T. dococcum), favorito dos romanos, e o grande (T. spelta). Entre a Idade Média e o Renascimento, eles perderam importância econômica pelo alto custo de produção e menor rendimento agrícola do que os outros grãos.

PUBLICIDADE

Nos últimos anos, porém, o farro voltou à mesa ocidental. Foi resgatado pelos modismos alimentares, os mesmos que apregoam as virtudes das sementes de chia, gergelim, girassol e linho, a quinoa e o edamame. O fascínio pelo trigo dos soldados alcançou até o Brasil. O produto chega aqui importado da Itália, país que nunca o esqueceu completamente. Em São Paulo, pode ser encontrado em delikatessens como a Casa Santa Luzia e em pratos de restaurantes como o Arturito e o Figurati. Seduz principalmente a clientela vegetariana, pelo fato de adquirir a importância biológica da proteína animal quando comido com legumes.

Pobre em gorduras, o farro é rico em fibras insolúveis, vitaminas do grupo B, proteínas, sais minerais, ferro, fósforo, magnésio, potássio e zinco, além de conter metionina, um aminoácido essencial, codificado pelo nosso código genético, inexistente em outros grãos. Finalmente, revela-se pouco calórico: cada 100g de seus grãos fornecem cerca de 340 calorias. Tanto que manteve a saúde e o vigor dos soldados dos césares, que mediam aproximadamente 1,68 m e pesavam entre 60 kg e 70 kg. Mesmo não sendo os gigantes retratados pelos filmes de Hollywood, davam conta do recado – e como!

Segundo o docente e escritor italiano Antonio Saltino, autor do livro Storia delle Scienze Agrarie – Dalle Origini al Renascimento (Edagricole, Bolonha, 1984), que trata da agronomia nos últimos dois milênios, o trigo dos soldados também voltou a interessar porque seu cultivo está associado à agricultura biológica e à exploração de regiões agrícolas marginalizadas, não adaptadas ao cultivo intensivo dos cereais. O problema agora se resume à produção.

Na Itália, a principal região de cultivo é o vale da Garfagnana, na Toscana setentrional. Mas a área plantada não passa de 2 mil hectares. É pouco para satisfazer o apetite do mercado. Não por acaso, são toscanas as principais receitas de farro: zuppa di farro, farro con fagioli e torta di farro. A União Europeia concedeu aos grãos da Garfagnana, conhecidos pelo sabor amendoado, o status de indicação geográfica protegida. Nada mais justo. Afinal, além de atrair novamente a humanidade, foi do nome farro que saiu a palavra farinha.

PUBLICIDADE

PUBLICIDADE