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Comida

O Brasil tem porcini. Fomos em busca dos cogumelos na Serra Catarinense

Outono é tempo de cogumelos. O 'Paladar' foi a Urupema colhê-los, saboreá-los e ver o nascimento de uma associação de produtores que pretende estimular seu consumo e melhorar a renda das famílias produtoras

Os cogumelos silvestres porcini, os mais apreciados na França e na Itália. Foto: Neide Rigo|Estadão Foto: Neide Rigo|Estadão

De Urupema

Já era tarde de uma noite gelada de outono quando chegamos, um casal de amigos e eu, à Pousada Rio dos Touros, em Urupema, considerada a cidade mais fria do Brasil, na Serra Catarinense. Enquanto havia luz no caminho não foi difícil constatar a fragmentação das florestas de araucária, árvore símbolo da região Sul, grande parte dela substituída pela monocultura de pinheiros (Pinus ssp).

Contraditoriamente – afinal sabemos das campanhas para erradicação da espécie exótica, invasiva e agressiva –, estávamos ali pelo brinde que o Pinus nos dá. Os cogumelos silvestres porcini, os mais apreciados na França e na Itália, são como uma compensação que cresce aos pés destas espécies que já fizeram grandes estragos ambientais. 

Os cogumelos silvestres porcini, os mais apreciados na França e na Itália Foto: Neide Rigo|Estadão

Os proprietários da pousada, Fernando Raddatz e Rose Mozzaquatro nos esperavam com gentilezas. Nós estávamos ansiosos pelo brilho do amanhã, quando sairíamos para coletar cogumelos silvestres. 

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No dia seguinte bem cedo fomos acordados por curucacas, aves enormes que fazem seus ninhos no alto das araucárias. Dezenas de jacus ciscando não longe de um comedor adornado com pássaros de todas as cores que iam e vinham sem parar bicar maçãs pingo-de-mel – não é uma variedade mas uma situação que só acontece nos frutos colhidos depois de uma geada, iguaria local. Na mesa do café, chimias de frutas locais nos esperavam junto com pão caseiro, além de nata, queijo e salame da vizinhança. Ao redor do fogão de lenha secavam fatias de cogumelos e, sobre a brasa, pinhões lustrosos do quintal. 

Logo chegaram de São Paulo o chef Cesar Costa, seu sócio Luiz Guilherme Simões e o cozinheiro Eduardo Amorim, do restaurante Corrutela, que será aberto em Pinheiros. E a conversa não poderia ser outra senão cogumelos enquanto limpávamos os porcini e outros coletados no dia anterior pelo Fernando. 

Cesar trabalhou na Inglaterra na Forager, empresa de Miles Irving, autor do livro The Forager handbook, a guide to the edible plants of Britain (O manual do forrageiro, um guia para as plantas comestíveis da Grã-Bretanha em tradução livre). Sua função era sair para coletar ervas espontâneas e cogumelos silvestres. 

Festa na cozinha. Limpeza e preparação dos porcini Foto: Neide Rigo|Estadão

O grande momento. À tarde, nos juntamos à Joziéli Wrubleschi para coletar cogumelos na propriedade da família dela: as cestas não foram suficientes e apelamos para sacolas e bacias tamanha a quantidade, apesar do fim de safra e da pequena plantação de pinheiros.

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E pensar que até pouco tempo atrás Joziéli tropeçava nos cogumelos quando ia colher gravetos e nem imaginava que andava sobre terreno minado de preciosidades, pois só ficou sabendo recentemente quando estiveram por ali a chef Paola Carosella, que usa os porcini catarinense em seu restaurante Arturito e o chef César Costa. Foram guiados por Daniela Oliveira, articuladora comunitária local. 

Daniela trabalhou com estes cogumelos junto à família Bunn, onde Larissa Bunn Gugelmin incrementou a semeadura de esporos de porcini nas terras da família, em Otacílio Costa, quando descobriu ao acaso que os gordos cogumelos que despontavam por baixo das agulhas dos pinheiros eram os mesmos que aprendeu a reconhecer e coletar na Catalunha, na Espanha. A feliz descoberta foi referendada pelo professor Admir Gianchini, do departamento de microbiologia da Universidade Federal de Santa Catarina, e em 2008 virou negócio. Ela passou a vender boletus frescos e secos para restaurantes como Mani, Tuju, Arturito – o tema foi matéria do Paladar há dois anos. 

  Foto: Neide Rigo|Estadão

Logo se espalhou a notícia de que os mesmos cogumelos de Otacílio Costa estavam em todos os pinheirais da redondeza. No Rio Grande do Sul também tem e aliás, até na Serra da Mantiqueira, perto de São Paulo. Porém, pelo clima, a Serra Catarinense, com dias ensolarados e noites frias, produz muito mais. E, segundo o pesquisador especialista em cogumelos Marcelo Sulzbacher, da Universidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, tanto os cogumelos de Urupema quanto os gaúchos são diferentes dos europeus e ainda diferentes entre si. Os nossos têm sabor e perfume menos acentuados.

Euforia. Joziéli também é debutante na coleta do porcino nacional. São 12 alqueires onde o pai cultiva pinheiros, há uns 16 anos. Ele resolveu trocar os pastos por Pinus elliottii quando houve um incentivo do governo estadual para o plantio da espécie para suprir a demanda das serrarias que se instalaram ali nos anos 1970. Mas o que parecia bom negócio hoje ocupa a terra e não dá nada em troca – o preço baixo não compensa a derrubada. Ainda bem que cogumelo dá aos montes, e não só porcini, pois há outros comestíveis. Em breve ouviremos falar mais de cogumelos nativos e exóticos, como a trufa que já foi identificada no Rio Grande do Sul. 

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Já era meio da tarde quando começamos a percorrer o bosque iluminado por raios de sol que encontravam falhas nas copas altas dos pinheiros. A alegria era enxergar uma protuberância levantando as folhas secas. Basta afastar com as mãos que você descobre um gordo cogumelo ainda claro e tenro. Alguns eram grandes, com chapéus marrons e resquícios de folhas-agulhas grudadas na superfície. Em outros, percebiam-se mordidas de lebres. E vários resistiam firmes, prontos para o jantar. Uma semana antes e a colheita teria sido muito maior. Ainda assim, saímos carregados. Nossa euforia só foi apagada com o pôr do sol e a repentina escuridão no bosque. De volta à pousada, era hora de lidar com os cogumelos. 

Associação de produtores. Depois do primeiro encontro com os chefs de São Paulo, Joziéli, Daniela, Fernando e Rose resolveram criar uma associação na região serrana de Santa Catarina para lidar com os cogumelos e produtos locais. A ideia é estimular o consumo do porcini e a melhoria de renda das famílias, cadastrar produtores, organizar o comércio de cogumelos de forma participativa, limpa, justa e sustentável, aproximar produtor e consumidor, e obter apoio técnico das universidades. Já começaram, preparando as coisas para o próximo outono. E o turismo gastronômico seria feliz consequência na época da safra para se coletar e consumir localmente o produto fresco, que é perecível e tem muita perda no transporte. A brevidade da safra, também dificulta o comércio in natura. A solução seria vender os cogumelos secos ou em pó.

Em suas andanças, Daniela tem colhido relatos sobre a existência desses cogumelos com antigos moradores da região e agora quer trabalhar em grupo na associação, respeitando a história e seguindo os princípios da agroecologia para que a atividade seja socialmente justa, ambientalmente correta e economicamente viável. 

Todo cuidado é pouco. Todo cuidado, quando se trata de identificação de cogumelo, é pouco. O micólogo Marcelo Sulzbacher alerta para o risco de coletar porcini sem ter certeza. Diz que há outras espécies do gênero Boletus venenosos como o Boletus satanas, ainda não identificado ali. Biólogo e guia turístico, Fernando quer incluir a caça aos cogumelos entre as atividades de sua pousada, que é quase um santuário de aves e recebe entre abril e junho observadores de pássaros. A ideia é juntar a época do pinhão e dos pássaros com os cogumelos porcini. 

O banquete. Finalmente, chegou a hora de rodear o fogão à lenha; em cima de sua chapa repousavam fatias de cogumelos para secar. Joziéli adaptou uma receita local, o entrevero, feito no disco de arado com carnes frescas e variadas, secas e defumadas, linguiças, bacon, legumes e pinhão cozido. Tudo chapeado para comer com polenta, pão ou macarrão. Joziéli colocou porcini, chapéu e pés cortados em cubos, dourados na manteiga.

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+ RECEITA: Entrevero porcino

O sabor lembrou carne de porco. E foi assim que nasceu o “entrevero porcino” que acompanhamos de polenta e vinho da serra. Que fique sendo o prato típico de Urupema! Ou pelo menos o prato de batismo da associação que nasce na região. Outono, volte logo! 

Joziéli adaptou uma receita local, o entrevero, feito no disco de arado com carnes frescas e variadas, secas e defumadas Foto: Neide Rigo|Estadão

NA COZINHA

Os porcini são apreciados crus, fatiados em salada com limão, azeite, sal e pimenta, acompanhada de queijo. O chapéu carnudo é excelente na chapa com manteiga, azeite ou a mistura dos dois, só para amaciar, o que acontece em poucos minutos. Na brasa também vai bem. Coloque dentro de uma peneira de metal e aproxime da brasa. Quando estiver macio, junte um pouco de manteiga, como fez o Chef Cesar Costa depois da coleta. É usado ainda em risotos e recheios de pasteis e tortas. Pode ser conservado em azeite ou vinagre e ainda ser fatiado e seco para hidratar na hora de usar. Ou transformar em pó para usar como condimento. Secos podem durar até 2 anos, sendo que, segundo Daniela, as safras mais velhas ficam ainda melhores no sabor e na aparência. Basta hidratar por cerca de meia hora em água morna e ainda usar a água para cozinhar arroz, sopas etc., ensina Cesar. 

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PORCINO, UM COGUMELO GORDO COMO UM PORQUINHO 

Em italiano diz-se porcino. No plural, é porcini. Recebem este nome na Itália os cogumelos da espécie Boletus edulis, como os que encontrados aqui nas plantações de Pinus spp. Também são comuns nos bosques de castanheiras (Castanea sativa Mill.) do sul do Brasil. São cogumelos simbióticos que dependem totalmente da parceria com as raízes destas árvores, assim como elas se aproveitam da companhia para melhorar a absorção de água e nutrientes da terra. O aspecto gorducho e maciço foi a motivação para o termo porcino – relativo a porcos. São de fácil identificação, mas ainda assim é recomendável aprender com quem tem experiência e nunca se aventurar a coletar e consumir espécies sem um prévio conhecimento, reforça o especialista em cogumelos Marcelo Sulzbacher. E diz que a carne branca, não mudando de cor quando o porcino for cortado ao meio, é uma das características desta espécie. Não a única. 

  Foto: Neide Rigo|Estadão

O píleo ou chapéu tem formato convexo que passa a ser mais plano com a maturação. É muito carnoso e compacto nos exemplares jovens, com um ou dois dias. Passa a esponjoso com a maturidade, em torno do quinto dia a uma semana. O estipe ou pé é robusto e compacto, cilíndrico e geralmente inchado na região da base. A cor do píleo varia do amendoado ao marrom mais ou menos escuro, com bordas mais esbranquiçadas. Com cerca de cinco dias a parte de baixo do píleo começa a ficar esverdeada mas ainda assim, se o cogumelo está íntegro, é comestível e neste estágio se presta bem para a secagem e elaboração de farinha.

DEZ REGRAS DE OURO ENTRE OS AMANTES DE COGUMELOS

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Baseadas nas conversas com os entrevistados, os Chefs Paola Carosella e César Costa, a articuladora Daniela Carneiro Máximo de Oliveira, o micologista Marcelo Sulzbacher, o biólogo e guia Fernando Raddatz e a jornalista Joziéli Wrubleschi, recém produtora de porcini. 

1. Nunca sair coletando cogumelos por aí sem ter a certeza da identificação que deve ser feita e supervisionada por especialistas no assunto. Aprenda antes com quem sabe, faça cursos, workshops ou saia com guias locais. 2. Não coletar cogumelos em terras alheias sem autorização do proprietário. Isto é roubo. 3. Não coletar cogumelos em áreas urbanas. Os cogumelos têm a capacidade absorver metais pesados, prejudiciais à saúde. 4. Usar sempre uma cesta ao coletar, pois assim estará espalhando os esporos enquanto caminha. Use cestas separadas caso resolva levar espécies tóxicas ou duvidosas. Nunca misture-as com espécies comestíveis. E leve sempre um canivete, assim poderá limpar a base dos pés já no local. 5. Evitar a ganância e ao encontrar um bosque público com muitos cogumelos, nunca colete tudo. Lembre-se que outras pessoas poderão chegar depois de você. Assim como os animais, que se alimentam deles e também ajudam a espalhar os esporos. Colha apenas o que pretende comer. 6. Se estiver pensando em montar um negócio de coleta de cogumelos, colete apenas os que crescem em sua propriedade ou fazer parcerias transparentes com outros proprietários e coletores.7. Formar clubes de coleta com regras definidas para que haja distribuição justa para a os coletores. O excedente pode ser seco com uso de desidratador, forno a lenha, lareira. Assim, terá cogumelos para o ano todo. 8. Ao comprar, escolher associações que respeitem a população local e que pratiquem comércio justo e o respeito aos princípio agroecológicos.9. Contentar-se em consumir cogumelos frescos no outono e de preferência nos locai endêmicos. Há grandes perdas no transporte que poderiam ser aproveitadas para fazer outros tipos de produtos como cogumelo seco, em pó, azeites aromatizados etc.10. Nunca, jamais, trocar uma floresta nativa de araucária por uma monocultura exótica de Pinus – aproveite o que já tem.

INFORME-SE SOBRE OS COGUMELOS DE URUPEMA E REGIÃO SERRANA DE SANTA CATARINA 

Em Florianópolis, todos os anos, acontece um encontro chamado Rick Foray, promovido pelo Laboratório de Micologia da Universidade Federal de Santa Catarina, e que traz pesquisadores do Brasil e do exterior dedicados ao estudo dos fungos. Para saber a programação deste ano, entre em contato com:  Professora Maria Alice Neves – maliceneves@gmail.com  Prefeitura de Urupema: imprensaurupema@gmail.com . Tel. (49) 3236.3057  Marcelo Zulzbacher – marcelo_sulzbacher@yahoo.com.br  Daniela Carneiro Maximo de Oliveira - dani.cmaximo@gmail.com  Pousada Rio dos Touros: contato@riodostouros.com.br – (49) 99128.9997

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