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Comida

Fazendo das tripas coração

Conheça a história da dobradinha, prato tradicional das terças-feiras em São Paulo que tem origens portuguesas

Privada das carnes, a população do Porto inventou a dobradinha. Foto: Roberto Seba|EstadãoFoto: Roberto Seba|Estadão

No cardápio dos restaurantes populares de São Paulo, herdado da rotina seguida pela antiga cozinha doméstica luso-brasileira, com aportes da trazida pelos imigrantes italianos, há um PF para cada dia da semana. Terça-feira é dia de dobradinha, rabada ou bife à role; na segunda se faz virado à paulista ou galinha com polenta; quarta-feira tem feijoada ou frango assado; quinta se vai de lasanha ou espaguete com frango; sexta-feira é pernil ou peixe com purê; e no sábado reina a feijoada.

Não por acaso, citamos a dobradinha, dobrada, tripa, bucho ou mondongo em primeiro lugar (veja a receita). É um dos pratos mais antigos de São Paulo. Na verdade, todo o Brasil aprendeu a fazê-la com os colonizadores portugueses. Eles introduziram a receita no século 16, quando chegaram. Trata-se de comida medieval, apreciada em muitos países europeus. Surgiu na cozinha das populações desfavorecidas, que por necessidade alimentar aproveitavam tudo dos ruminantes (o bovino, no caso), exceto o berro. Nunca esqueçamos que, até o século 17, a população da Vila de São Paulo era formada por mamelucos (filhos de branco e índio) pobres. Alimentavam-se de frutas, peixes, caça, milho, feijão e mandioca. Comer carne de boi – animal introduzido na Capitania de São Vicente, de Martim Afonso de Souza, em 1534 – era um luxo.

Privada das carnes, a população do Porto inventou a dobradinha. Foto: Roberto Seba|Estadão

A dobradinha a que nos referimos utiliza como ingrediente básico o rúmen, o maior dos quatro estômagos do bovino. Mas também pode ser usado o omaso, o terceiro deles. As receitas variam. Se antes de ir ao fogo for lavada em água e esfregada com sal e limão, até ficar branca, e a seguir aferventada com bicarbonato de sódio, não tem cheiro e gosto fortes e incorpora os sabores e aromas dos ingredientes adicionais, geralmente feijão branco, legumes, embutidos, às vezes charque e bacon, especiarias, etc.

Portugal, que chama o prato de dobrada ou tripa, como os franceses (tripes à la mode de caen) e italianos (trippa alla romana, alla bolognese, alla fiorentina, alla milanese ou busecca), envolve sua grande receita com uma história romântica.

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Em 1415, o infante d. Henrique foi ao Porto fiscalizar os trabalhos no estaleiro onde eram construídas as embarcações para a conquista de Ceuta, na África, cidadela moura. A população local, imbuída de espírito cívico, ofereceu toda a carne bovina de que dispunha para alimentação dos marinheiros, ficando com as tripas.

Para matar a fome, “inventou” um prato com aquelas sobras. Surgiu uma sopa grossa, a tripa ou dobrada à moda do Porto (os portugueses agora têm receitas diferentes para cada uma), inspiradora do poema homônimo de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, escrito no restaurante Ferro de Engomar, ainda hoje na Estrada de Benfica, em Lisboa: “Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo, / Serviram-me o amor como dobrada fria. / Disse delicadamente ao missionário da cozinha / Que a preferia quente, / Que a dobrada (e era à moda do porto) nunca se come fria”. Além disso, o prato conferiu aos habitantes do Porto o gentílico de tripeiros.

Difícil saber por que, em Portugal, serve-se o prato às quintas-feiras. Seria pelo fato de, naquele dia, as fressureiras (vendedoras de vísceras) pagarem a licença semanal à associação de classe? A mesma indagação se faz diante da dobradinha paulistana. Por que na terça-feira? Alguém já disse, sem comprovação histórica, que era pela razão de no passado o abate dos bois se concentrar na véspera, segunda-feira.

Apesar do sucesso, a dobradinha não chega a ser unanimidade, no Brasil ou em Portugal. Milhões a apreciam, outros tantos a abominam. Isso, porém, jamais afetou a divindade gastronômica do prato. Sejamos democráticos. À mesa também se aplica a estocada sarcástica de Nelson Rodrigues: “Toda unanimidade é burra”.

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