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Prato-cabeça

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Formar gosto é tão libertador quanto sair do analfabetismo

Mais do que educação alimentar, a formação do gosto não é só para crianças, muito menos para privilegiados: tem fundamentos genético-evolutivos, mas molda-se com a cultura

Sabe a criança que recusa a verdura amarga imposta pela mãe? O gosto dela está programado para comer a coisa certa e segura – deseja macronutrientes e glutamato livre, despreza micro e fitonutrientes – se resguardando de riscos de toxicidade. O detalhe é que o repertório gustativo herdado por ela guarda uma defasagem: poucos milhares de anos, algo insignificante em relação à evolução humana, mas suficiente para desesperar a mãe. Pois é, as mudanças de hábitos da maioria das sociedades humanas contemporâneas correram mais rapidamente do que nossa evolução adaptativa.

Poucos nutricionistas se preocupam com a formação do gosto, mas é por essa intensa e diversa experiência cultural que se supera a dependência da trinca açúcar-leite-carboidrato que segue como “padrão de fábrica neolítico”, e pré-agrícola, no bebê humano atual.

Queijo. Nosso ‘padrão de fábrica neolítico’ deixa o paladar saudoso de leite e carboidrato Foto: Alex Silva|Estadão

Formar gosto significa ampliar o uso do enorme leque de receptores abrigados nas transmembranas de nosso tecido epitelial, desde as papilas gustativas aos receptores nasais, sistema complexo que reconhece, guarda, seleciona e transmite milhares de estímulos.

O amargo que a criança identifica como risco passa – após experiências de associação, emulação, equívoco, escassez, curiosidade – a ser selecionado por 43 diferentes genes TAS2R. É assim que cacau, café e vinho se tornaram desejados pela maioria, na contramão da natureza. Se aquela mãe veiculasse a verdura com amidos e maltoses, seu gosto se firmaria como saudosa memória no repertório cultural da criança.

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Os cozinheiros sabem quanto uma comida sem acidez fica sem graça: seguindo a natureza, a única acidez interessante seria aquela associada à vitamina C, por termos perdido ao longo da evolução a capacidade de sintetizá-la. Já a cultura do gosto – influenciada pela conservação dos alimentos – fez com que os canais HCN (proteínas que também regulam nosso ritmo cardíaco) nos tornassem a única espécie que considera a acidez não apenas benéfica, mas também necessária. E os produtos da fermentação passaram de toscas ameaças ao sistema digestivo a fontes de prazeroso e fragrante umami.

Deixar de investir na formação do gosto das pessoas – de todas idades e condições – tem custos sociais elevados. Nossas papilas ingênuas, que ainda imaginam se hospedar no corpo de um coletor-caçador, nos entregam a inúmeros distúrbios, pelos quais costumamos culpar algum ingrediente e nos iludimos remediar com dietas. Alimentos superprocessados satisfazem o padrão genético do gosto enquanto dificultam sua formação. Vídeoreceitas de redes sociais se dirigem a você como hominídeo nômade, que saliva em seu galho ao pressentir a amilase irrigada por doce de leite e queijo gratinado.

Formação do gosto é mais do que educação alimentar. Não é só para criança, muito menos para privilegiados. Pelo contrário, é fator de liberdade tanto quanto sair do analfabetismo, para enfrentar a sociedade contemporânea com o devido discernimento. Tem fundamentos genético-evolutivos, mas molda-se com a cultura. É prática diária e familiar, mas abre fascinantes fronteiras da ciência, aliás prestes a classificar novos gostos, incluindo o oleogusto (ligado às gorduras) e o kokumi (sensação de plenitude ligada ao cálcio). Já descobrimos que só 20% de nossas percepções provêm das papilas, enquanto 80% dizem respeito aos aromas, e que temos receptores de gosto até no pulmão! Já na cozinha, engatinhamos ao formular perfis aromáticos, a partir de moléculas comuns aos alimentos: é o que torna irresistível uma ostra com kiwi.

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