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Gila é dura. Tanto bate até que fura

Fruto da família da melancia e do pepino tem casca rígida, que só quebra se arremessada ao chão, e faz doces mas também macarrão

Há dois meses, a gila da foto veio da serra de Santa Catarina, onde crescia espontaneamente sobre uma vegetação rasteira. Estava mimetizada entre longas ramas com folhas recortadas e aveludadas. Era parte do vasto quintal da pousada Rio dos Touros e foi dos donos que ganhei o grande fruto com cerca de 3 kg. 

Desde então, a esfera com grafismo em dois tons de verde imitando a malha fluvial amazônica, rodou da copa à cozinha e vice-versa na medida em que seu espaço precisasse ser liberado. Teve tempo de ser vista pelas visitas, elogiada pela beleza e erroneamente identificada por elas. Todos acertavam a família, mas erravam gênero e espécie. “Que melancia linda!”

Gila. Da família do pepino e da abóbora, pode ser confundida com uma melancia Foto: Neide Rigo|Estadão

No México, de onde é originária pelo que se sabe, é conhecida como chilaca, cidra- chayote ou chilacayote – termo derivado do náuatle Tzilacayotli que quer dizer abóbora lisa. E o fruto verde ou maduro é usado para doces, como os pedaços cristalizados, por exemplo, ou pratos salgados como sopas, com carne, em saladas. 

A planta de nome Cucurbita ficifolia pertence à família das Cucurbitáceas, a mesma da abóbora, da melancia, do melão e do pepino. O gênero é o das abóboras, mas espécie diferente, ficifolia, com referência ao formato de suas folhas – aliás, a folhas de figo são frequentes como aromatizante do doce. Na língua portuguesa podemos encontrar termos como abóbora-chila, chila-caiota, gila-caiota ou simplesmente gila. E não precisamos ir ao Sul para encontrá-la. Na Serra da Mantiqueira, é cultura de quintal, embora as novas gerações já não saibam mais como lidar com ela. 

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Gila quebrada antes de cozinhar. Já é possível ver a polpa de filamentos Foto: Neide Rigo|Estadão

Nestes dois meses em que ficou em minha casa trouxe ensinamentos. É uma espécie desconhecida de muita gente, que parece durar para sempre com sua casca dura que não se corta com faca. Neste tempo também tive oportunidade de espiar por aí como é usada em várias culturas. Rose Kéia Mozzaquatro, a dona da pousada, me contou que em sua casa de solteira, de família italiana, a gila era usada para dar volume a chimias, os doces de frutas usados como geleias para comer com pão. Aproveitavam-se frutas como maçãs, caquis, ameixas, kiwis e marmelos, para juntar ao melado antes de ser batido para o açúcar. As frutas eram as de época, as que coincidiam com a colheita da cana, mas gila sempre havia pois, colhida madura, quando o cabinho seca, pode durar uns bons meses na despensa. E foi esta chimia da mãe da Rose que me inspirou. 

Na Espanha e na América Latina o doce de gila é conhecido como cabello de ángel – basicamente a polpa cozida em fios apurada com a mesma quantidade de açúcar e aromatizada com canela, cravo, casca de laranja, de limão ou folhas de figo. O doce em fios pode ser servido como sobremesa ou usado para rechear tortas e pastéis. Em Portugal é com o doce de gila que se faz uma das sobremesas mais tradicionais do Alentejo. O pão de rala é como uma torta com massa de amêndoas recheada com doce de ovos e doce de rala. 

+ LEIA MAIS:Receita de doce de gilaReceita de chimia de gila com frutas Receita de rocambole de chimia de gila

O maior atrativo da gila não é exatamente o sabor, uma mistura de chuchu com abóbora que acho bem agradável, mas sim o aspecto da polpa branca que se desfaz em filamentos delgados. Depois de cozidos, os fios lembram macarrões de celofane, quase transparentes. 

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Fora do Brasil, há muitos pratos em que os fios são usados imitando macarrão com baixas calorias. Também é usado como substituto da barbatana de tubarão, uma opção vegetal para a tradicional sopa chinesa, que atrai não só veganos mas defensores do meio ambiente. Tanto que na Ásia pode ser conhecido como shark fin melon ou melão-barbatana-de-tubarão. Naquele continente é usada na medicina caseira contra diabetes (não o doce feito com ele, claro) e ovário policístico. 

Independente do uso da gila como vegetal leve e inofensivo em sopas, saladas e substitutos de macarrão, ou como uma bomba calórica em que geralmente se transforma quando tratada como doce, ela sempre é cozida e as técnicas de preparo variam conforme o local, mas um passo que quase sempre coincide é o de jogar o fruto no chão para quebrar a casca antes de cozinhar. Coloca-se a gila num saco de pano limpo e lança-se com força até quebrá-la. Só não vale fazer isto se mora em apartamento – coloque a fruta no saco e desça ao hall ou use a calçada do prédio. Acho que ninguém vai estranhar. Ou vai? 

Doce de gila Foto: Neide Rigo|Estadão

Uma divergência na técnica é o uso de metal. Para os que trabalham com as mãos para separar a polpa, uma justificativa é que o metal da faca altera o sabor. Mas na Costa Rica, por exemplo, usam o martelo de cozinha de metal para separar os filamentos e às vezes faca para descascar com golpes certeiros. Testei ambos os métodos e não senti diferença. Outro ponto de divergência é que há quem cozinhe a polpa com as sementes e só as tire depois quando estiver desfiando. Preferi a técnica de tirar todas as sementes antes de cozinhar porque elas podem ser plantadas ou você pode salgá-las e torrá-las. São deliciosas como petiscos. 

Aliás, como as abóboras em geral, toda a planta é comestível. Frutos jovens e maduros, sementes, flores, botões, ramos jovens ou cambuquira e folhas tenras, como hortaliça. O mais difícil é mesmo encontrar para comprar. Temos que pedir para produtores de abóboras em feiras orgânicas. Quem sabe se criarmos demanda passam a produzir. Mas se você encontrar uma dessas por aí, agora já sabe o que fazer com elas. 

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COMO ABRIR 

Lave bem a gila e coloque dentro de um saco de pano limpo. Arremesse o saco no chão para rachar a casca. Tire e reserve as sementes, lave a polpa para tirar a espuma e coloque os pedaços com casca numa panela grande. Cubra com água e leve ao fogo. Deixe cozinhar por cerca de meia hora ou até o momento em que a casca fica amarelada e a polpa se solta facilmente da casca. Espere esfriar e, com as mãos ou garfo, vá tirando os filamentos grudados na casca. Descarte as cascas e fiapos mais grossos e amarelados. Coe numa peneira ou pano. A gila está pronta pra fazer doces, chimias, sopas. E pode ser congelada em pequenas porções para o futuro.

Para abrir a gila nem tente cortar com uma faca, o segredo é arremessar no chão mesmo Foto: Neide Rigo|Estadão

 

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