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Michael Pollan e a consciência por trás do garfo

Ele é um ativista militante, com discurso afiado sobre como é necessário pensar um sistema alimentar alternativo ao que hoje se impõe no mundo todo, dominado por grandes empresas e indústrias do alimento processado. Trata-se de um discussão relevante, sem dúvida. Mas que à primeira vista poderia soar árida, irritante, tipo papo de ecochato. Não é o caso: a prosa de Michael Pollan flui fácil e as implicações políticas e sistêmicas do ato de comer, que são o pano de fundo de sua argumentação, surgem com naturalidade no último livro do jornalista e professor da Universidade de Berkeley, na Califórnia. Cozinhar: Uma História Natural da Transformação (Ed. Intrínseca, 448 páginas, R$ 49,90) será lançado oficialmente no Brasil na Flip 2014, em Paraty – onde Pollan participa de uma mesa na sexta-feira, 1º de agosto, às 12h.

Michael Pollan e a consciência por trás do garfoFoto:

O livro narrado na primeira pessoa pelo autor americano conta suas experiências na cozinha, agrupadas em quatro grandes técnicas, relacionadas aos quatro elementos básicos naturais: o churrasco (fogo), o caldo-base (água), panificação (ar) e fermentação (terra). Pollan ensina receitas, esmiúça a técnica, mas, mais do que filigranas culinárias, o que faz sua leitura tão atraente é a forma como vai costurando relatos de suas próprias aventuras na cozinha com história, antropologia, gastronomia, ciência, histórias de vida – na melhor tradição do bom jornalismo: claro, instigante, sem jargões.

O Paladar conversou com Pollan sobre o livro e suas visões sobre gastronomia e sistema alimentar. Abaixo, você lê a íntegra da entrevista, que ocorreu via Skype, antes de Pollan vir ao Brasil.

FOTO: Ken Light/Divulgação

Parece haver uma ideia que é recorrente nos seus livros: chamar as pessoas à consciência em relação ao que comem. É isso mesmo? Acho que sim. Vejo minhas ideias dando às pessoas mais informação e fazendo-as mais conscientes de onde vêm sua comida. Vivemos um momento muito curioso. Pela primeira vez na história, grande parte das pessoas não tem ideia de onde vem ou como foi produzido, do que é feito o que comem. Historicamente, as pessoas sabiam isso porque estavam intimamente envolvidas no processo de plantar, abater, cozinhar . Mas delegamos todo esse trabalho a empresas e fazendeiros. Há cem anos eu não poderia fazer o que faço: a informação que eu procuro e levo às pessoas todo mundo tinha. Meu objetivo com isso é, primeiro, satisfazer uma curiosidade pessoal sobre essas questões – de onde vem a comida, como ela é feita. E então tenho a fé de jornalista de que, com boa informação, as pessoas tomarão decisões melhores. Tanto em termos de saúde pessoal como da saúde da terra, decisões políticas.

Entender e explicar como funciona a cadeia do sistema alimentar é uma das suas preocupações. Falando sobre um elo fundamental dessa cadeia, os consumidores, seriam eles capazes de, por meio das suas escolhas, mudar efetivamente o sistema? Sim. Mas não completamente. As decisões de compra das pessoas, o que eu chamo de “votar com seu garfo”, é algo muito poderoso. Não devemos subestimar isso. Vimos o poder disso nos Estados Unidos. Vimos a criação de uma economia da comida orgânica, sem nenhum apoio de grandes empresas ou do governo. Pelo menos no início. Nasceu de uma troca entre indivíduos organizados e produtores, procurando fazer algo diferente. Vimos a ascensão das feiras de rua, da Agricultura Apoiada pela Comunidade (CSA, na sigla em inglês; modelo em que agricultores são financiados diretamente por consumidores, sem intermediários). Tudo isso foi movido pelos consumidores comuns. Mas isso não significa que podemos consertar todo o sistema da comida apenas com uma mudança nos padrões de consumo. Também temos que ter mudanças no nível político. Porque políticas de agricultura são como as regras de um jogo que todos somos obrigados a jogar. Se as regras são pensadas de uma determinada forma, a comida de qualidade e saudável pode ser mais cara que a processada. Então há muitas pessoas que não têm como fazer essas escolhas, “votar com seus garfos”: elas são pobres. É neste ponto que devemos ir além do “voto com o garfo” e começar a falar do voto político mesmo.

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Você já respondeu várias vezes a essa questão, mas acho que ela ainda é pertinente: como alimentar bilhões de pessoas com comida orgânica, local e sustentável? Quando levamos esse tipo de comida a uma larga escala, ele não fica inviável ou restrito a uma elite capaz de comprá-la? Eu acho que, de fato, não sabemos se podemos alimentar o mundo de maneira sustentável. Mas também não sabemos se podemos alimentar o mundo de forma industrial – na verdade, estamos falhando miseravelmente nesse formato. Produzimos muita comida industrial, e ainda assim há um bilhão de pessoas com fome no mundo. Somos capazes de produzir 2.800 calorias de comida por pessoa por dia. Em tese, há comida suficiente para todo mundo. E por que há fome? A razão tem a ver com o fato de que não basta produzir para alimentar. O que interessa é como isso é distribuído. No Qatar, consome-se um monte de comida. Mas não produz-se nada. E por que eles têm tanta comida? Porque têm muito dinheiro para comprá-la.

E tem a questão do desperdício: 40% é jogado fora. Sem falar no tanto de comida que alimenta carros: no Brasil usa-se cana para o etanol, aqui nos EUA é milho. Portanto tem comida que em vez de ir para boca das pessoas vai para os carros. É uma questão muito complicada. Hoje, a comida industrializada alimenta apenas 40% da população. A maior parte do mundo ainda se alimenta do que é produzido em escala menor. Então acho que a verdadeira pergunta é: em um mundo de mudanças climáticas, será que a comida industrializada vai conseguir alimentar as pessoas? A agricultura em escala industrial é mais vulnerável às mudanças climáticas do que outras indústrias. Porque, como sistema, é muito eficiente, mas não resiliente. Se pudéssemos estender os benefícios da agricultura moderna e sustentável para todos os pequenos produtores do mundo, você teria um enorme crescimento produtivo, sem ter que recorrer à industrialização da agricultura.

Embora os pobres não possam comprar comida orgânica às vezes, é importante lembrar que comer de forma saudável não significa necessariamente comer comida orgânica. Significa comer comida de verdade, não comida altamente processada. McDonalds, Burger King não são baratos: eles apenas nos poupam tempo. Mas se você pode cozinhar com as próprias mãos, independentemente se é pobre ou rico, pode ter uma dieta de ótima qualidade, saudável. O primeiro passo é comer comida de verdade, e, aí, então, começar a se preocupar sobre o quão sustentável é. Quando digo comida de verdade, falo do que as pessoas comeram por centenas de anos, não tem um monte de ingredientes e não foi preparado por uma empresa.

E a comida industrializada é ruim por si só? Não melhorou nada os últimos anos? Conto isso no livro: por muitos anos, desenvolvemos técnicas para processar a comida que em geral fizeram-na mais saborosa, nutritiva e conveniente. Pense na fermentação, no processo de assar um pão, fazer cerveja. São exemplos fantásticos de como processar comida. Mas por volta de 1880, começamos a inventar técnicas para processar comida que a tornou menos saudável e saborosa – atendendo mais ao interesse das indústrias do que das pessoas. Foi quando aparecerem a farinha branca, o açúcar refinado. De repente, a comida processada começou a fazer as pessoas doentes. Tivemos um monte de problemas de saúde pública, e tivemos que adicionar vitaminas à farinha, etc. É possível processar comida de forma que melhore a saúde das pessoas. Essa suplementação de vitaminas é positiva. Mas temos que lembrar que foi inventada para sanar um problema criado pela própria indústria.

Acho que há um trabalho interessante acontecendo para se buscar novos substitutos para carne: coisas que parecem muito as de proteína animal, mas não são. É algo positivo não tanto pela qualidade da comida, mas para reduzir o impacto sobre o ambiente – que hoje é tremendo. Precisamos reduzir nosso consumo de carne urgentemente. Enfim, é preciso olhar por que empresas processam comida: para tornar o negócio mais lucrativo. E é muito difícil ganhar muito dinheiro vendendo ingredientes simples, in natura. Você ganha dinheiro criando um valor agregado. Embalando, cortando, criando alguma novidade sobre aquele produto. E isso tende piorar a qualidade da comida, porque o que importa nessa lógica é vender mais, e não fazê-la melhor, mais saudável.

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Nesta semana, o New Amsterdam Market (feira emblemática que reunia pequenos produtores) em Nova York fechou. Não seria um sinal da dificuldade de pequenas cooperativas e negócios em competir com as grandes corporações de alimentos? Não conheço em detalhes esse caso, apesar de ter ouvido falar muito bem desse mercado. Meu palpite é que o que vendiam começou a ser facilmente encontrado em grandes cadeias de supermercados. Hoje tem comida orgânica em cada vez mais lojas. Com o tempo, quem trabalha com comida orgânica foi se tornando cada vez menos único no que vendia. E, bom, isso é o capitalismo. É muito difícil estar à frente o tempo todo. Quando tem algo que é muito especializado e artesanal e dá certo – como a comida orgânica ou, sei lá, brotos vegetais pré-lavados -, muito rapidamente eles viram commodities. Isso força preços para baixo. E estimula a competição. É um jogo brutal. E Nova York é um caso à parte: cozinha-se muito pouco lá – as pessoas não tem espaço, tempo; recorrem invariavelmente à comida processada.

Qual o papel dos chefs, que viraram celebridades nesses últimos anos, nesse sistema alimentar? Eles têm poder de mudar alguma coisa? Chefs têm um papel muito importante e construtivo. É bom lembrar: há não muito tempo, chefs eram irrelevantes para as pessoas, com exceção dos ricos. Agora, nos Estados Unidos – não sei como é no Brasil -, chefs estão ajudando a liderar esse movimento social para mudar o sistema de alimentação. Uma das coisas mais interessantes que alguns estão fazendo é usar o brilho do seu glamour para iluminar os agricultores e pequenos produtores. Glamour é algo importante na nossa sociedade, e, hoje, chefs o têm; agricultores, não – eles vinham sendo denegridos há muito tempo. Nos EUA, ao menos, os grandes chefs descobriram que uma ótima cozinha começa com uma ótima agricultura – e portanto eles dividem crédito com produtores rurais nos cardápios de seus restaurantes. Acho isso muito positivo. Gente como Jamie Oliver e Alice Waters tem feito um grande trabalho com a reforma das merendas escolares. O papel do chef hoje mudou muito: eles agora são ativistas – além de provedores de comida para os ricos.

Em um ponto do seu novo livro, você diz que no futuro próximo, cozinhar uma refeição do zero será visto como algo tão exótico quanto hoje é fazer cerveja ou queijo em casa. Mas, ao mesmo tempo, há hoje um interesse cada vez maior das pessoas por processos artesanais – é moda moer seu próprio café, assar o próprio pão. Isso não é contraditório? Qual dessas tendências vai prevalecer? É um paradoxo. As pessoas nunca foram tão interessadas por comida, e as pessoas nunca foram tão desatentas com o que estão comendo. É preciso ver quem está moendo, torrando seu próprio grão de café e quem está indo ao McDonalds – não são a mesma pessoa, claro. Mas há pessoas que fetichizam uma coisa determinada. Tem os exímios fazedores de cerveja, os vidrados em fazer picles, ou coisas desse tipo. Mas, no resto do tempo, essas mesmas pessoas deixam o que comem na mão de companhias fast-food. É um pouco como o típico sujeito “machão” cozinhando: não acontece tão frequentemente, mas quando acontece, é um show: tem churrasco, labaredas de fogo, todo mundo tem que assistir à performance do homem que parou tudo para cozinhar. É mais performance do que rotina.

Me preocupa que tenhamos esse tipo de fascínio com produtos artesanais, mas ao mesmo tempo não fazemos o beabá de cada dia, todo dia. Embora sejamos interessados em ler sobre comida, saber dos chefs, em vê-los cozinhar na TV, por alguma razão isso não se traduz em cozinhar com nossas próprias mãos. Mas poderia – e deveria-, eu acho. Se a discussão sobre comida mudasse um pouquinho, as pessoas poderiam perceber que a melhor forma de participar dessa conversa sobre comida e desse desejo de entender mais sobre o assunto é botar a mão na massa você mesmo, todos os dias. Não é como assistir futebol – do qual é muito difícil você participar do que está vendo, porque aqueles caras estão num nível muito alto. Cozinhar é um prazer muito democrático, que está ao alcance de todos nós. Essa é uma das razões porque escrevi o Cozinhar. Eu queria me envolver diretamente com o ato de cozinhar e espero que mais gente se entusiasme com isso.

Nos Estados Unidos fez muito barulho a história do Soylent (empresa californiana que vende líquidos insípidos, mas com todos os nutrientes que seriam necessários para o homem e saciam o apetite, substituindo a comida). Mas essa ideia de uma pílula mágica no lugar da comida não é propriamente nova. Por que tanta atenção para o tema agora? Não vamos falar sobre Soylent daqui a cinco anos. É como você disse: não tem nada de novo. Você vai ao supermercado hoje e pode comprar um monte de coisas em pó que podem te manter vivo – suplementos para perder peso, ganhar peso. Suplementos alimentares não são nada novos. O fato de o inventor da marca ter dado esse nome Soylent e ter vindo da indústria de tecnologia… Ele vem do Vale do Silício, e, hoje, achamos qualquer coisa que esses caras fazem interessante. Acho que é um experimento curioso de se analisar. Fala diretamente a pessoas que estão ansiosas por toda essa conversa sobre comida – ansiosas de ter que refletir e se preocupar sobre de onde vem o que comemos.

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Acho que o mais interessante nessa história do Soylent é que ela revela uma certa arrogância diante da compreensão sobre comida. A ideia que sabemos o bastante para simular completamente a dieta humana… É de uma prepotência! Não sabemos. Basta lembrar das experiências falhadas de se reproduzir leite materno. Soylent não é ciência complexa. O cara entrou no site do Ministério de Agricultura e montou essa lista de todos os nutrientes de que humanos precisam. Essa lista está atualizada? Sabemos realmente do que de fato precisamos? Acho que não. Só descobrimos agora que precisamos alimentar micróbios do nosso intestino grosso para sermos saudáveis. Porque eles representam 90% das células no nosso corpo. A maioria das dietas de nutrição não levam isso em conta – elas pensam apenas no corpo humano. Descobriu-se há pouco que o leite materno tem um monte de nutrientes que bebês não são capazes de digerir – eles são destinados aos micróbios que habitam nosso corpo.

E por fim tem a questão: por que faríamos isso (substituir comidas por pílulas)? Comer é um dos grandes prazeres da vida. Se você está tão ocupado programando códigos ou ganhando dinheiro que não tem tempo para comer… E o sexo? E outras coisas interessantes que gostamos de fazer? Eles vão bolar um substituto para isso também?

Como e o que as pessoas vão comer daqui a uns 50 anos? Bom, não acho que vai ser Soylent! Porque não vai dar a elas prazer suficiente. E também não vai as manter vivas e saudáveis. Sou um jornalista, não tenho bola de cristal, mas acho que temos dois caminhos. Ou vamos olhar para trás, para esse nosso sistema de comidas industrializadas e vamos dizer: “que erro! Que desastre de saúde pública! Comer desse jeito, fast-food, pode ser bom uma vez por mês, mas, sempre, é um desastre”; ou vamos seguir nesse caminho, e teremos uma sociedade que essencialmente tem que vai “medicalizar” o cotidiano. Quer dizer, diabetes será um estilo de vida, escolhido por 33% da população – todos vivendo à base de injeções de insulina-; haverá centros de hemodiálise a cada esquina nas cidades; 60% do PIB irá para manter as pessoas vivas, enquanto comem suas porcarias. Honestamente, é nesse último caminho que estamos agora. O desafio é desviar esse caminho.

Você tem diálogo com as grandes empresas e indústrias de alimentação? Como é a conversa? Sim, converso com eles, de tempos e tempos. Eles me procuram de vez em quando e os entrevisto com alguma frequência . Ao menos nos Estados Unidos, eles estão muito nervosos com seus consumidores: têm medo que haja uma debandada no consumo do que produzem. Estamos num momento muito tênue, delicado: é muito fácil desencadear um “medo de comida”. Tivemos o episódio do “pink slime”(lodo ou limo rosa, em tradução literal). Descobriu-se que um material que era adicionado a hambúrgueres era constituído de restos de carne misturado com amônia. Essa história se espalhou e mães ficaram malucas, começaram a fazer protestos, petições, boicotes. Algumas empresas quase quebraram, e a indústria ficou um pouco em choque pensando: “O que aconteceu? “. Porque as pessoas comiam esses hambúrgueres há muito tempo sem ligar em saber como era feito.

Então, sim, a indústria está ligada na discussão sobre o sistema de alimentação, porque não querem uma nova crise. Mas também querem explorar essa tendência de conscientização sobre a comida para fazer marketing. É comum ver produtos se vangloriando de terem apenas cinco ingredientes, de cumprirem algumas regras que pessoas como eu vêm propagando. A palavra artesanal por exemplo, está sendo roubada pelo mercado – já roubaram a palavra natural… Hoje existe “junk food orgânica”! É um processo dialético o que se trava entre a indústria da alimentação e os críticos da indústria da alimentação. E eles, da indústria, não são bobos: pelo contrário, são muito eficientes em cooptar críticas e transformá-las em formas de vender mais comida industrializada.

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E essa dialética pode hegelianamente resultar em progresso – comida melhor pra todo mundo? Bem, acho que a síntese dialética desse processo será: muita “junk food” com “health claims” (quando uma marca diz que o produto faz bem pra saúde ou reduz colesterol, etc.) no rótulo (risos). O futuro será Coca-Cola fortificada com vitaminas e fibras! Falando sério, não acho essa uma síntese satisfatória. Essa é uma das razões pelas quais tenho me esforçado para fomentar uma cadeia de alimentos alternativa – diferentemente do que, por exemplo, faz a Michelle Obama, de tentar melhorar a comida processada. Não estou convencido de que essa estratégia dela vá funcionar. Vale tentar, mas acho que tínhamos que nos esforçar mesmo para retomar o controle do nosso sistema alimentar criando cadeias menores, com mais relações diretas entre consumidor e produtor e, então, democratizar isso, de forma que seja acessível ao máximo de gente possível.

Corrija-me se eu estiver errado, mas sinto um tom utópico nos seus livros e nas suas falas… Acabei de te falar que o futuro seria tomado por Coca-colas vitaminadas (risos).

É verdade! Mas o que quero dizer é que , nos seus livros, há uma busca por uma autenticidade que talvez não exista mais. Talvez uma idealização de que no passado é que era bom, que se cozinhava e comia de verdade. É verdade que é fácil romantizar o passado. Mas, de fato, as pessoas estavam em contato com a comida. Estavam plantando, cozinhando, manipulando sua própria comida. Já houve um tempo em que sabíamos melhor de onde vinha o que comemos. Às vezes não tínhamos comida suficiente, e a dieta era mais sem graça, com menos variedade. Isso é importante: uma das coisas que leva as pessoas a buscar comida industrializada é a busca por novidade. Hoje você vai ao supermercado na ala de comidas prontas e pode encontrar qualquer prato que quiser – de diferentes países. Eu não sei fazer comida thai, ou, sei lá, etíope, mas tem uma empresa que faz e a embala para mim. Então, sim, a dieta das pessoas quando cozinhavam o tempo todo era mais monótona, sem dúvida. Mas, sinceramente, acho que ter esperança é muito importante. Nem sempre dá resultado, mas motiva as pessoas. É importante ter uma utopia para a qual você mira. O seu caminho se constrói quando você aponta para um destino. Então mesmo que não chegue lá, no fim, você sabe em que direção está seguindo.

Uma curiosidade sobre outro livro seu: em que prato exatamente estava pensando quando escreveu, no livro Food Rules: An Eater’s Manual, que não devíamos comer nada que nossas bisavós não achassem que fosse comida? Pensei nisso quando estava segurando nas mãos tubos de pasta de dente – só que de iogurte. Era tão esquisito! Para pôr comida pra dentro do corpo era preciso esmagar esse tubo cheio de ingredientes como gelatinas e emulsificantes que nunca foram parte da receita de iogurte. E me peguei pensando: isso é ou não é comida? Como se pode discernir? Bem, há muitas métricas possíveis para definir o que é comida. E uma delas seria: há 50 anos atrás, as pessoas reconheceriam aquilo como comida?

Mas essa regra não é a única. Também digo para não comer nada com mais do que cinco ingredientes. Nenhum desses filtros que proponho é perfeito, mas se você junta alguns deles, acho que funciona. E, devo dizer, algumas pessoas tem avós que são péssimas cozinheiras – mas não precisa pensar na sua própria! Pense numa avó siciliana, numa avó brasileira. Não precisa nem ser avó: apenas imagine alguém que realmente sabia o que era comida.

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E se você botar essa avó siciliana na frente de um prato do Ferran Adrià ela não ia reconhecer tampouco, não? Sim. É verdade. Isso eliminaria a cozinha molecular do nosso cardápio – o que não acho que seria uma grande perda para a sociedade (risos). Veja, essa comida que ele faz é interessante, da mesma forma que arte é interessante; mas não é relevante para a conversa sobre como vamos comer daqui pra frente. Falamos de elitismo quando discutimos os orgânicos. Bem, agora estamos falando de alimentar um número muito pequeno de pessoas, que procuram uma forma extrema de invenção. Talvez saia algo dessa forma de cozinhar, algo que algum dia vai decantar e chegar a mais gente e nos ajudar a ter mais prazer com a comida ou nos alimentar melhor. Mas, fazendo um balanço, acho que essa cozinha molecular é uma camada tão fina da realidade… Enfm, atrai muita atenção, mas é praticamente irrelevante para os tipos de discussões com as quais estou preocupado.

E com que frequência você cozinha? Eu?

Sim. Bom, diria que cozinhamos cinco noites por semana, e fazemos outra coisa nas outras duas noites – muitas vezes, ir comer na casa de alguém ou num restaurante. Cozinhamos muito!

Mais depois do livro, cozinha mais, não? Com certeza. Agora tenho muito mais truques na manga. Consigo variar meu cardápio mais tranquilamente. Porém, não cozinho como cozinho no livro. Algumas das receitas ali levam cinco, seis horas. No dia a dia gasto, sei lá, 45 minutos cozinhando. Meu padrão é grelhar alguma coisa ao ar livre, saltear algumas verduras, fazer algum grão ou massa. Nos fins de semana sou mais ambicioso. Ainda faço pão, uma vez por semana. Eu e meu filho fazemos cerveja juntos. Esse tipo de coisa é mais trabalhosa, cerimonial. Mas mesmo essas coisas mais complexas me deram um maior repertório de técnicas para o dia a dia.

E a comida no Brasil? Tem ideia de como seja? Sei que tem muita carne aí, carnes boas. Mas conheço pouco. Estou muito curioso em conhecer a cultura culinária brasileira, que é uma das grandes culturas no mundo. E estou curioso também para conhecer gente que está envolvida no movimento da comida.

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Cozinhar: Uma História Natural da TransformaçãoAutor: Michael PollanEditora: Intrínseca (448 páginas)Preço: R$ 49,90

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