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Comida

Na cozinha da revolução soviética

Das extravagantes iguarias dos czares à alimentação atrelada à política de Stalin e à nostalgia da culinária russa tradicional: escritora moscovita conta a história de três gerações de sua família tendo como fio condutor a comida

Na cozinha da revolução soviéticaFoto:

Por Cíntia BertolinoEspecial para o Estado

Até o início dos anos 1990, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas era uma imensidão que ocupava 1/6 de toda a terra habitada do mundo, tinha 11 fusos horários, 15 repúblicas de etnias diferentes e cerca de 300 milhões de habitantes.

Visto de um microcosmo moscovita familiar, a história russa recente e sua comida ganham vida em Mastering the Art of Soviet Food – A Memoir of Food and Longing (Crown, 2013, sem tradução). Em um relato fascinante, Anya von Bremzen narra a história de três gerações de sua família, da Rússia czarista à União Soviética, tendo como fio condutor a comida.

A autora convida o leitor a tomar um gole do champanhe doce soviético, o favorito de Stalin, a sonhar com a kulebiaka (a famosa torta russa), a encarar as longas jornadas na fila do pão e a entrar na cozinha coletiva que ela e sua mãe dividiam com outras 18 famílias.

Após a Revolução Russa, em 1917, Lenin expropriou e repartiu as casas. Cada cidadão tinha direito a 9 m² e, assim, se instalava nos kommunalki, apartamentos com cozinha e banheiro compartilhados.

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FOTOS: Reprodução

Muito do livro se deve à memória da mãe da autora, Larisa Frumkin, e sua aversão ao regime soviético. Em 1974, elas foram para os Estados Unidos. Anya, então com 10 anos, e sua mãe desembarcaram na Filadélfia como expatriadas. Na bagagem, a edição de 1959 da bíblia da culinária soviética, The Book of Tasty and Healthy Food, que retratava um estilo de vida soviético acessível a poucos: o da mesa farta.

As duas só retornaram a Moscou em 1987, com a abertura política iniciada por Gorbachev.

O livro de Anya tem só oito receitas, suficientes para despertar a curiosidade gustativa do leitor. Apresenta uma cultura distante, vista a partir da cozinha, em um período histórico particular. “Todas as memórias felizes de comida são iguais; todas as memórias infelizes são infelizes cada uma a sua maneira”, escreve a autora, parafraseando Tolstoi. Anya falou ao Paladar sobre comida e a antiga URSS. Leia a íntegra da entrevista:

Como foi retornar à União Soviética e sua comida? Uma das razões que me levaram a escrever esse livro foi a sensação de ter uma vida dupla como escritora especializada em gastronomia. Quando comecei minha carreira, no início dos anos 1990, após ter emigrado nos anos 1970 (para os EUA), botar comida na mesa ainda era um drama soviético. Toda vez que comia em um restaurante fino sentia uma culpa angustiante por toda minha família em Moscou. Anos depois, a Rússia se tornou um país rico, mas ainda eu era assombrada.

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O que te assombrava? Sentia que para tudo o que comia profissionalmente havia uma outra camada: uma sombra de nosso trauma coletivo soviético. Algo profundo, existencial, relacionado à comida. Tudo o que levava à boca quando criança tinha uma grande carga ideológica. Esse assombro talvez possa ser descrito como um passado complicado, encapsulado dentro de mim e que finalmente tinha que sair. Levei dois anos para escrever o livro, mas embalei esse projeto por um bom tempo antes de colocar essa história no papel.

Você diz no livro que a comida foi para os escritores russos do século 19 o que a paisagem representava para os ingleses e o amor para os franceses. A que se deve essa presença tão marcante no imaginário russo? Comida na Rússia, e posteriormente na União Soviética, nunca foi apenas comida – e isso é o que mais me interessava. Comida era tratada como ferramenta política e também como motivo de pequenos triunfos privados. Era uma maneira importante de conectar o público e o privado, o político e o pessoal. Nossa família era uma típica família soviética, cuja história estava conectada à do país que passou pela Revolução Russa, o stalinismo, a Segunda Guerra Mundial.

Em que sentido comida era “ferramenta de controle político e social” pós- Revolução? Grãos e pão foram os grandes propulsores da Revolução Bolchevique, afinal era preciso alimentar os camponeses famintos e os operários. Também foi o que levou Stalin a subjugar e escravizar camponeses com as coletivizações forçadas no final dos anos 1920.

O que eram essas coletivizações? Eram as colcoses, fazendas coletivas. Como todos os alimentos eram produzidos e vendidos pelo governo, a alimentação era instrumento de controle.

Memórias. Muito do livro se deve ao que Anya (esq.) ouviu da mãe, Larisa

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No livro, você fala também da escassez de alimentos. Comida e fome na antiga União Soviética são indissociáveis? As pessoas da geração da minha mãe passaram por situações terríveis no período pós-revolução e durante a Segunda Guerra Mundial. Ela ainda come como um lobo faminto. Mesmo sem guerra, a escassez e as filas intermináveis eram parte do cotidiano soviético e nos fizeram celebrar comida e até encará-la como fetiche.

Se você tivesse que escolher um prato representativo da Rússia czarista e outro da União Soviética quais seriam? Para a Rússia czarista seria a kulebiaka, um torta incrivelmente extravagante e saborosa recheada com camadas de peixe (esturjão, claro), arroz e cogumelos selvagens. A kulebiaka é o exemplo de uma cozinha extremamente sofisticada que desapareceu após a Revolução. Para a União Soviética, um dos pratos mais característicos é a salat olivier: uma salada de batata com picles, cenoura, ervilhas enlatadas, ovos e maionese (veja a receita). As ervilhas enlatadas e a maionese representam a guinada soviética em direção à comida industrializada. O prato ainda é preparado nos feriados. Na Espanha, na Turquia, no Irã e em tantos outros países ficou conhecida como “salada russa”. (No Brasil, é a maionese).

A propaganda oficial de Lenin dizia que serviço doméstico “esmaga e degrada mulheres”. Que efeito isso teve para a cozinha russa? Nos anos 1920, os bolcheviques queriam liberar as mulheres dos serviços domésticos – minhas duas avós eram cozinheiras terríveis! Mas o feminismo bolchevique falhou e, na década seguinte, já sob o domínio de Stalin, as mulheres soviéticas assumiram a famosa dupla jornada. Em uma sociedade tão culturalmente controladora, algumas mulheres, como minha mãe, começaram a cozinhar como forma de expressão no início dos anos 1960.

O que eram os “dissidentes da cozinha”? No final dos anos 1950, graças a Nikita Kruchev, os russos começaram a mudar para apartamentos particulares com suas próprias cozinhas. A cozinha era o local onde amigos e familiares se reuniam para comer e falar livremente, mesmo contra o governo. Nas cozinhas comunitárias não era possível. Sempre havia a possibilidade de haver espiões. Assim nasceu a expressão “dissidentes da cozinha”. Lembro-me dos amigos de meus pais fechando a porta da cozinha quando queriam discutir os últimos livros banidos pelo regime, por exemplo.

Comida soviética fazia parte da sua realidade como imigrante nos Estados Unidos? Minha mãe e eu cozinhávamos pratos soviéticos com frequência, mas sempre com uma nostalgia inquietante por um passado que era intimamente nosso, mas também tão complicado politicamente.

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Dentre tantas cozinhas regionais da ex-União Soviética qual é sua favorita? Adoro a comida da República da Geórgia. É um misto da cozinha mediterrânea oriental com um pouco de influência indiana. A cozinha da Geórgia leva muitos temperos, ervas frescas, molhos ácidos de ameixa e tem muitos pratos com molhos cremosos e complexos à base de nozes.

Qual foi o legado soviético para a cozinha russa? Os 70 anos de União Soviética, quando produtos industrializados de má qualidade reinavam, acabou destruindo muito da cozinha tradicional russa. Escritores e novos chefs estão tentando reinventar a culinária típica, mas é um caminho difícil. Hoje, até alguns oligarcas, com muitos rublos, tem sido acometidos por certa nostalgia de uma comida há muito perdida.

O que os russos comem hoje em dia? Sushi! E mussarela, foie gras, burrata, massa… A dieta dos russos está incrivelmente globalizada, apesar de alguns pratos soviéticos como a salat olivier continuarem populares.

Mastering the Art of Soviet Food – A Memoir of Food and Longing Autor: Anya von Bremzen Editora: Crown (352 págs.; US$ 16, na Amazon.com)

>> Veja a íntegra da edição do Paladar de 30/1/2014

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