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O frango ensopado da minha mãe

A mãe da colunista Neide Rigo tinha um só jeito de preparar o frango, e ele foi sendo aperfeiçoado ao longo da vida

Quando ela se curvou na escada com as mãos no rosto e chorou, a vizinha quis saber o motivo e achou até graça pois aquilo mais parecia capricho da adolescente. Vontade de comer frango, coisa de grávida de primeira viagem, fácil de resolver. O frango de granja foi comprado na feira pela mulher condoída, mas a tristeza não passou e não passaria completamente até que ela voltasse a ter suas próprias galinhas no terreiro muitos anos depois, quando deixou na cidade grande os filhos criados e voltou a morar no campo. Tinha saudade da galinha ciscando no quintal, do chiado da carne de porco na gordura quente, do cheiro da panela de ferro no fogão de lenha, do jiquiri com angu de milho verde, do cafezal em flor, daquele almeirãozinho roxo que crescia nos carreadores, do arroz de pilão pra comer com o frango perfumado de alfavaca feito pela mãe e até do fedor da lamparina. 

Com o tempo a filharada ajudou a driblar a saudade dos pais e das coisas do campo, mas o frango sempre foi uma questão à mesa. Reclamava do que encontrava por aqui, embalado sem cabeça, com pele escorregadia e cheiro de pena molhada. Pelo menos uma vez por semana ia comprar frango numa avícola que descobriu perto de casa e descia a ladeira segurando a ave pelos pés amarrados com cordão de pano. Aliás, minha primeira atividade remunerada foi encher um saco com tiras de tecido que sobravam das costuras da mãe e trocar na avícola por umas moedas. 

Tradição. A galinha pronta para ir em pedaços para a panela de ferro larga: a gordura da barriga será usada para frigir, com alho socado e óleo. Foto: Neide Rigo|Estadão

Comprava o frango no sábado e matava no domingo. E nada de pescoço cheio de sangue do destroncamento, o melhor era a faca afiada que fazia sangrar o necessário para não manchar o molho. Portanto, nada de galinha à cabidela lá em casa. Ela tinha um só jeito de preparar o frango inteiro e ele foi sendo aperfeiçoado ao extremo ao longo da vida com direito a todo tipo de idiossincrasia.  Não me lembro de molho de tomate suculento para o macarrão. Era quase só um tingimento à base de tomate e óleo e os espaguetes ficavam soltinhos e firmes mesmo sendo aqueles à base de ovos. O molho para acompanhar era o do frango. E que molho! Denso, brilhoso, vermelho, cheio de colágeno. Às vezes, em vez de macarrão, era polenta, mas arroz e feijão sempre havia e nenhum outro acompanhamento parecia ser páreo para aquele frango. O perfume do tempero usado invadia a casa e a vizinhança. Não sei de onde vinha aquela alfavaca, se tínhamos plantada no quintal ou se comprava na feira – esqueci de perguntar. Mas era e sempre foi o tempero oficial do frango caipira de nossa mãe. 

Só quando meu pai se aposentou e os dois voltaram para a roça é que fui aprender a cortar as partes. Ainda assim sempre acho que estou fazendo alguma coisa errada quando chego no osso do peito e não acho junta que ajude. Uma de minhas irmãs filmou o passo-a-passo para não errarmos mais e cronometrou sua esperteza em destrinchar a ave pelas juntas. Foram três minutos e vinte e quatro pedaços bem delineados. 

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Se destrinchar pode até ser feito com calma, para depenar qualquer lerdeza é imperdoável. Mergulhava o frango por segundos na água quente e passava para uma peneira grande onde as penas eram arrancadas rapidamente. Caso a água quente cozinhe a pele, ela se rasga na hora de puxar a pena e isto era o fim para dona Olga. A pele não podia rasgar em hipótese alguma. Depois, era a vez de sapecar a ave com palha de milho jogada sobre a lenha para eliminar penugens e este processo deixava um ligeiro sabor de defumado indescritível na carne. 

Já para eviscerar a ave sem deixar romper nenhuma tripa era preciso atenção. Um corte na entrada, outro circundando a saída, um puxão preciso e ela tinha em mãos todo o trato digestório intacto sem sujar o interior da ave. Quando era franguinha com ovas, brigávamos por elas cozidas como o fígado. 

Galinha boa é galinha caipira, bem sequinha e com a pele grudada à carne. Foto: Neide Rigo|Estadão

Parte da água que foi aquecida para depenar era separada para enxaguar a pia, a tábua, a bacia e a bucha vegetal que guardava para lavar bem os pés e o corpo todo. A parte da higiene do bicho, não delegava a ninguém. 

Não me lembro de ter visto minha mãe comer frango ou ovo de granja depois que voltou para a roça. Dizia dar enjoos o cheiro de pena das galinhas enjauladas. Talvez tenha comido um ou outro peito na casa de alguém pra não fazer desfeita, mas sempre que podia levava ovos e frango caipira já limpo de presente para não correr riscos.

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Esta rotina de criar e preparar frango se repetiu mesmo depois que voltaram recentemente para uma cidade, onde, dadas as circunstâncias de terreno urbano, tiveram um galinheiro de verdade. No sítio, era diferente. As galinhas tinham tantos privilégios que em vez de elas ficarem presas, éramos nós que ficávamos. A casa, um pequeno canteiro de ervas e um jardim foram cercados com tela para que não entrassem. Elas tinham a propriedade inteira pra ciscar. Minha mãe aparecia na porta da cozinha, a turma toda piando se acumulava no portão esperando talvez um repeteco daqui pipipipi matinal acompanhando de mãozadas de quirera.

Quando ela entrava em casa, as galinhas corriam desajeitadas para o portão da frente supondo que ela apareceria pela porta da sala com o balaio de milho. 

Ela conhecia cada quem: as amizades e implicâncias, o grau de parentesco, a idade, quem estava bicando quem, a fulana que roubou os pintinhos da outra, os ovos de angola chocados pela galinha, a outra que ficou choca em ninho vazio, o pintinho fraco que foi tratado com almeirão picado e quirera cozida, a galinha zangada que rejeitou os filhos etc. E entre uma conversa em tatibitate e outra com um franguinho à porta do galinheiro, perguntei como ela tinha coragem de matar se tratava com tanto amor aquelas aves. A resposta foi simplória e profunda: “é só não dar nome, nome anima”. 

Mas depois de morta e destrinchada, eram tantas partes que rendia uma galinha que minha mãe agradecia a generosidade e a tratava com respeito do começo ao fim. O conhecimento da anatomia da ave, a faca bem afiada e a destreza resultavam em pedaços limpos, sem fiapos de carne, pele ou osso. E era também disso que ela reclamava do frango de granja – pele solta, rasgada e molenga. No frango caipira cada peça tem lá seu pedaço de pele bem colada. 

RECEITA:  + Confira a receita completa do frango ensopado da dona Olga

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Já na panela, sempre de ferro, sempre larga, sempre para uma só ave, a própria gordura da barriga frigia junto com alho socado e óleo. E ali ela ia ajeitando os pedaços, um a um, de modo que encostassem todos ou quase todos no fundo da panela. Apenas o fígado ficava para mais tarde que era para não cozinhar demais e manchar o molho. Se bem que ela não precisava se preocupar com isto pois, independente do momento em que era colocado na panela, cerca de cinco minutos depois alguém dos filhos já o tinha roubado, ainda vermelho por dentro, com um pouco do molho recém-formado para comer com pão. E a panela continuava a chiar. Diferente do frango de granja, o caipira é sequinho, vai fritando sem molhar, chiando. 

E quando todos os pedaços estavam dourados, polvilhava por cima o colorau que ela mesma preparava, sem mexer – a tintura do tempero impregnava na pele só com o vapor, sem diluir. Em seguida, um chiado maior acontecia – um pouco de água quente era jogado pela lateral da panela, nunca sobre o frango que era pra não lavar o tempero e a cor. E assim ela ficava ali por perto do fogo como uma galinha a chocar que não sai do ninho. O fundo da panela começava a secar e ela jogava mais um pouco de água quente pela lateral. Ia cozinhando assim, panela tampada, fogo manso, pouca água, quase como a confitar, sem deixar queimar o fundo.

O frango ensopado da dona Olga. Foto: Neide Rigo|Estadão

Quando percebia que a pele estava macia, cutucava com um garfo a asa. Se a asa está macia, é sinal de que todo o resto também está. Juntava outro tanto de água pela lateral da panela, agora um pouco mais, esperava até formar um molho avermelhado e aí sim colocava folhas de alfavaca, cebolas em rodelas, pedaços de pimenta cambuci ou pimentão vermelho ou pimenta dedo-de-moça sem semente. Tampava e cozinhava mais uns dez minutos, só para amolecer a cebola e pimentas. Não coloca estes temperos antes para que não derretessem. 

Uma coisa que jamais fazia era juntar ao frango legumes como batata. As batatas ficam deliciosas, dizia, mas o frango, coitado, tem todo o sabor roubado por elas. Na hora de desligar o fogo, sempre o mesmo pedido em forma de pergunta para quem estivesse por perto: ô menina, você não quer ir ali à horta buscar um pouco de salsa e cebolinha pra mim? Invariavelmente a resposta de qualquer das filhas era em tom de brincadeira: não, não quero.., mas eu vou. Nada de cheiro-verde colhido antes, guardado em geladeira, picado em mise-en-place. Ela dizia que salsa perde metade do perfume quando sai da terra e que o resto acaba se você picar muito antes de usar. Cheia das sabedorias que aprendeu com a vida. 

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Na hora de comer, o frango se multiplicava – ela sabia das coisas quando separava coxa de sobrecoxa ou dividia o peito em quatro. Se surgia uma visita bem na hora da comida, era bem provável que ainda pudesse encontrar um curanchim com o delicioso molho para comer com arroz. A menos que eu estivesse presente, pois nunca deixei restar pé sobre pé, roendo até os últimos ossos. 

E assim, tenho em mim o que ela me ensinou mas também o lamento por ter ido embora cedo demais, me deixando a sensação de que vou roer ossinhos eternamente em busca daquele molho perdido, mesmo quando houver carne. 

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