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Comida

Os cascas-grossas saem do forno

O homem sempre teve mania de pão. Como a população cresceu e a mania não diminuiu, o jeito foi industrializar as fornadas. Mas eis que surge uma geração de aficionados dispostos a recuperar o milagre dos pães artesanais

Os cascas-grossas saem do fornoFoto:

Chegou a hora e a vez do pão. E como em todas as modas, o novo é o velho relido e repaginado. O aparecimento do pão de fermentação natural confunde-se com o desenvolvimento das civilizações. No Egito de 300 a.C., produzir o levedo que inflava os pães era tarefa reservada a profissionais especializados. Eis que, em São Paulo, 2.300 anos depois, observa-se o milagre da multiplicação – não do pão propriamente, mas das padarias que se dedicam a produtos artesanais, feitos com fermento natural de criação própria.

O Paladar reuniu 11 padeiros que nos últimos anos têm levado às mesas das casas e dos restaurantes paulistanos pães literalmente casca-grossa: mais encorpados e de sabor mais complexo. Tudo por causa do tradicional método de fermentação natural.

Justiça seja feita, o trabalho desse time não é inédito. Em São Paulo, as padarias São Domingos, Basilicatta e Nove de Julho usam fermento natural para fazer seus pães desde o início do século passado. Essas padarias foram homenageadas no Prêmio Paladar 2012, que elegeu o pão de fermentação natural como produto do ano. Aquele clássico pão italiano, crocante e denso, é um autêntico resultado do método milenar.

Vida útil. Um pão francês só é bom por umas 2 horas. O pão ‘au levain’ dura 1 semana. No foto, o pão da Le Pain Quotidien. FOTOS: Andre Lessa/Estadão

Manha. Essa nova leva de padeiros especializou-se para trabalhar com um produto que é manhoso – exige cuidados especiais, tem que ser alimentado todo dia e é muito sensível à temperatura. O fermento natural, conhecido pelo nome francês levain, é um ser vivo.

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Os padeiros tratam-no como um filho ou como um velho cheio de manias. Tem até quem dê nome às crias. Na verdade, o levain é uma massa em que se misturam leveduras (tipo de fungo unicelular microscópico) e bactérias presentes no ar. É obtido pela simples mistura de água e farinha, deixadas ao relento por um tempo determinado. Há também receitas que usam frutas ou mel como base, à qual depois vai se acrescentando farinha e água. Demora em média uma semana para ficar pronto e um mês para ficar forte, pronto para fazer o pão crescer.

As leveduras e bactérias desse fermento natural, quando misturadas à farinha a ser usada no pão, geram gás carbônico e alguns ácidos, dando textura e sabor peculiares à massa que vai ao forno.

Do fermento natural criado artesanalmente, reserva-se sempre uma boa parte, que vai sobreviver enquanto for bem cuidada. É o chamado chef, ou massa madre. Há chefs anciãos, como o de 162 anos do padeiro Rogério Shimura, um dos pioneiros da panificação mais sofisticada em São Paulo. O segredo para manter o bicho vivo e forte é conservá-lo em ambiente resfriado, o que inibe a proliferação exagerada de bactérias, e acrescentar farinha e água pelo menos uma vez ao dia, para não deixá-lo desnutrido. Mas, diferente do vinho, a idade não melhora o fermento – só lhe dá história para contar.

Pão da Julice Boulangère

Encontro de levains. Quando os onze padeiros se encontraram semana passada para a foto ao lado, levaram seus pães e seus filhotes: os fermentos. Uns mais líquidos, outros mais pastosos, mais esbranquiçados ou escuros, encontraram-se na geladeira. O fermento de David de Moraes, da Le Vin Boulangerie, foi esquecido fora, sob o calor que se abateu sobre São Paulo nos últimos dias. Não deu outra: em minutos, borbulhou, cresceu e estourou a tampa do potinho em que era guardado. Paulo König, da Le Pain Quotidien, aproximou-se e abriu a geladeira com os fermentos e exclamou: “Isso aqui vale mais de um milhão!”.

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Como diz Raffaelle Mostaccioli, da Jelly Bread, o fermento é a alma do pão. E tem tempo de desenvolvimento pouco adequado aos padrões industriais. Por isso foi substituído por fermentos de laboratório, com espécies selecionadas de leveduras. Enquanto um pão francês comum tem fermentação de 3 a 4 horas, a do pain au levain é de 16 a 20 horas. Em contrapartida, o pão de fermentação natural tem mais vida útil: dura até uma semana.

Nos anos 1980, com a valorização dos produtos artesanais, o pão de fermentação natural voltou a ser procurado na Europa e nos Estados Unidos. Agora, com brasileiros mais viajados e de paladar exigente, ganha a cena por aqui. A “nova levain” de padeiros aproveita a onda e aquece seus fornos.

+ A turma do pão sem pressa: 11 padeiros e seus levains

>> Veja todos os textos publicados na edição de 13/12/12 do ‘Paladar’

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