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Comida

Os focos da resistência

Por Daniel Telles Marquesde Santiago de Iguape, Bahia, especial para o Estado

Os focos da resistênciaFoto:

Em busca da comida afro-brasileira autêntica, o Paladar foi ao quilombo Kaonge, no Recôncavo Baiano, onde funciona o restaurante É de Oxum. No comando do fogão a lenha, a ialorixá Juvani Nery recebeu a reportagem enquanto preparava uma moqueca de ostras cultivadas pelos quilombolas nas margens do Rio Paraguaçu. O azeite de dendê feito no pilão foi despejado quase como manteiga e um punhado de ervas picadas salpicado por cima dos moluscos. O cheiro da alfavaca e coentro de boi (também chamado coentro de peixe ou da Índia, a depender da região) amassaria o dendê e também o cheiro marinho das ostras. Temperos inconstantes nas moquecas por aí. “Na minha tem sempre”, explica de pronto mãe Juvani.

Seu restaurante não está em guias gastronômicos. É quase um improviso construído há quatro anos para atender os turistas que percorriam a rota da liberdade, formada por quilombos. Não aceita cartão, mas aceita os clientes na cozinha para uma conversa enquanto a moqueca não está pronta.

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O fogão a lenha fica no canto, os mourões cercam o lugar, tampas estão descasadas de panelas e colheres pendem no teto. É uma cozinha pequena, mas aconchegante.

No salão com oito mesas, uma máquina de lavar roupa ainda embalada. “A minha queimou e minha filha mandou logo uma nova”, conta orgulhosa. “Não quero mais essa história de lavar roupa no rio. Já fiz muito. Agora se tem facilidades, por que não usar?”

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O ensopado é servido com arroz e pirão

O quilombo mudou desde que foi reconhecido como tal em 2005. Para a festa de comemoração da demarcação de terras quilombolas, que teve a presença de políticos e ministros, coube a Juvani fazer o caruru. “Mais de 4 mil quiabos”, disse, seguindo o hábito baiano de explicar a dimensão do caruru a partir da quantidade de ingredientes utilizados. “Só de frango, mais de trinta.”

As casas de taipa ganharam alvenaria. Chegou energia elétrica e com ela geladeira para estocar as sobras de ostras, sururus, siris e outros bichos que o mangue dá. “Dia desses chegou um senhor aqui querendo uma moqueca de sururu e me perguntou. ‘A senhora tem?’. Oxi se tenho! É só você esperar para descongelar”, conta. Apesar do congelador preparado, é preciso avisar mãe Juvani por telefone antes de chegar para almoçar.

Moqueca quilombola. Mãe Juvani, do É de Oxum, no quilombo Kaonge, prepara moqueca de ostras com azeite de dendê feito on pilão.

Hoje, Dia da Consciência Negra, quem for ao quilombo Kaongê vai comer a moqueca de ostras. Em uma genealogia que se perde como a fumaça do fogão a lenha, a ialorixá Juvani Nery conta que aprendeu a cozinhar com a mãe, com receitas ensinadas pela avó, recebidas da tataravó. E faz moqueca exatamente do modo que aprendeu com a mãe aos 17 anos.

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Para falar das comidas de seus antepassados do quilombo mãe Juvani recorreu aos orixás. Diz a mitologia que quando Olorum (o Divino Criador) encarregou Oxalá (divindade associada à criação do mundo) de modelar o homem, a primeira ideia foi moldá-lo com o ar. Não deu certo e o homem desvaneceu. Talhou em madeira e a criatura ficou dura. De pedra foi pior. Tentou o fogo e o homem se consumiu. Testou azeite, vinho de palma e água, tudo em vão. Aí Nanã saiu do fundo da lagoa com um punhado de lama. Foi com ela que Oxalá moldou a criatura. E com o sopro de Olorum, a criatura ganhou vida. “A lama também nos deu todos os mariscos”, explica a ialorixá. No mundo idealizado por Olorum, a comida tem papel crucial. Para agradar a muitos orixás, é preciso o afago de seu prato preferido.

>>Veja a íntegra da edição do Paladar de 20/11/2014

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