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Procure dilênias (ou fruta-cofre) pelos bairros

Conheça este fruto verde, com perfume ácido e refrescante semelhante ao de maçãs, que pode estar em uma árvore perto de você

Não me lembro se foi em Salvador ou Vitória. Só sei que deixamos o carro na calçada de uma grande praça com a alegria de ter encontrado facilmente duas ou três vagas a escolher. Na volta, uma lataria ligeiramente afundada e o fruto ao lado do carro se denunciando. Era grande, algo entre uma laranja e um melão, de cor caramelo e perfume forte. Descobrimos logo que o espaço vago não era sorte mas prudência dos que já conheciam os fatos. Ninguém quer umas bolas daquelas caindo sobre sua cabeça. 

Isto tem uns 30 anos e a maior lembrança que tenho é do perfume inicial da fruta. Ela teria que nos acompanhar durante uns 20 dias que era o tempo que ainda tínhamos para nossa viagem de carro pelo litoral. No primeiro dia elogiamos o perfume, que no segundo chamamos de cheiro. E a partir daí foi começando a feder a óleo diesel velho em posto de gasolina. A intenção era trazê-la para casa e tentar saber mais sobre ela. Não conseguimos, pois a convivência tornou-se insuportável. Era ela ou nós no carro. 

O fruto maduro tem cheiro forte e é pesado, mas os verdes, que devemos comer, têm perfume ácido e refrescante, quase como maçãs. Foto: Neide Rigo|Estadão

Espero que este preâmbulo não tenha desanimado o leitor de conhecer a Delícia indica em profundidade, pois o fruto maduro, de fato, tem cheiro forte e é pesado, mas são os verdes que devemos comer. Estes, sim, têm perfume ácido e refrescante, quase como maçãs. 

Agora, por que falar de uma fruta exótica, da qual dificilmente vamos ver cultivo comercial e que não vamos encontrar nas feiras e supermercados? Porque todo ano, nesta época, recebo fotos via e-mail ou Instagram perguntando “que fruta é esta?”. E fico com um dó danado de ver por aí as árvores carregadas de frutos que quase ninguém sabe usar. Originária do Sudeste Asiático, pode ser encontrada na Índia, Bangladesh, Sirilanka, China, Vietnam, Tailândia, Malásia, Indonésia, onde tem diversos usos. Por aqui é negligenciada e tem dois nomes curiosos: fruta-cofre e fruta-da-pataca. 

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Leia mais:+ Curry de peixe com dilênia 

As primeiras plantas foram trazidas ao Brasil em 1808 com outras espécies exóticas, para compor o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, criado por Dom João VI para aclimatação de especiarias da Índia. A atração maior eram as flores que, além da beleza e perfume atraente para insetos e abelhas, têm uma particularidade que as tornam únicas. Elas se abrem, se expõem à polinização e se cobrem novamente com as sépalas firmes e carnudas – o que comemos. Acontece que quando se fecham aprisionam o que estiver ali no momento. Pode ser um pedaço de folha que grudou ao acaso, um inseto que perdeu o voo ou até uma moeda colocada propositalmente. E era uma pataca (moeda de prata) que fanfarrões costumavam ajeitar sobre as flores para fazer graça na época. Um caso que se conta é que Dom Pedro I fixou patacas nos centros de várias flores e, quando os frutos estavam formados, meteu-os numa caixa e enviou para Portugal se gabando de estar num país onde dinheiro nasce em árvore. 

A dilênia não é o tipo de fruta que se come crua. Foto: Neide Rigo|Estadão

Você terá de domá-la. A dilênia não é o tipo de fruta que se come crua. Não que seja tóxica. Ao contrário, é rica em antioxidantes, tem sabor ácido, ligeiramente doce. Tem acidez, que a torna refrescante e saborosa e dá bons sucos e temperos – na linha do limão, do tamarindo, do pó de manga verde, do biribiri ou da garcínia. No entanto, é fruta a ser domada. Porque não é doce o suficiente para se servir como sobremesa nem macia o bastante para ser desgarrada de suas fibras. Sim, fibras, muitas fibras, tão grossas e firmes quanto as de bucha vegetal. O segredo é separar a polpa, crocante quando crua mas macia quando cozida, dessas fibras. Basta cozinhar e passar por peneira grossa: a polpa de dilênia pode ser congelada, para usos diversos. 

Também não é fruto para fracotes. O fruto propriamente dito, fica no cerne e é pouco interessante do ponto de vista culinário, e as sépalas carnudas e côncavas que o rodeiam bem juntas formando uma grande esfera, firme e pesada. Escolha frutos verdes e menores. Para separar as sépalas, parta a fruta em quatro com um corte certeiro usando o cutelo sobre uma tábua, e descarte o fruto do miolo. Com as sépalas separadas, basta ir cortando a base dura e deixando mergulhadas em água, pois oxidam rapidamente – depois de cozidas, os pontos oxidados desaparecem, ficando a polpa com cor verde claro. As menos fibrosas podem ser cortadas longitudinalmente, paralelo às fibras, e usadas em curry ou picles. As duras podem ser cozidas em pedaços na panela de pressão por cerca de 5 minutos ou até que fiquem macias. Tire da água e passe em peneira grossa apertando para reter as fibras. A polpa estará pronta pra usar em doces cremosos, musses, recheios, sorvetes ou tempero ácido para curries e dhal (cozido indiano de leguminosas). A água de cozimento pode ser preparada como chá de maçã – basta acrescentar cravo e canela e servir quente ou gelado. 

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Curry de peixe com dilênia Foto: Neide Rigo|Estadão

No caso de usar os pedaços inteiros em pratos com o curry de peixe, receita inspirada nos ensopados similares do norte da Índia e Bangladesh que dou a seguir, é melhor tirar as peles externas com um uma faca de legumes. E mesmo que tenha fibras, basta, na hora de comer, segurar com as mãos os pedaços pelo lado mais carnudo, levar à boca e puxar. A polpa ficará nos dentes e as fibras, ligadas em rede entre elas, você puxará com as mãos, não muito diferente do que fazemos com as pétalas de alcachofras. Mesmo porque o peixe usado também é espinhento e já vai mesmo precisar das mãos. Pode não ser um bom prato para restaurantes, mas para comer na mesa da cozinha, na intimidade da família, é dos mais reconfortantes. 

Se quiser ver receitas com este ingrediente, como fruta ou legume, pesquise como outenga, o nome pelo qual é conhecido em Assam, no norte da Índia. 

Fique de olho! Em vez de caçarmos pokemons ou andar digitando por aí, tentemos descobrir onde há uma boa árvore de dilênia perto de nós. A beleza delas é inconfundível. 

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