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‘Rompi com a forma da alta gastronomia, não com o conteúdo’, diz Sudbrack

Chef fecha seu restaurante no Rio após quase 12 anos de funcionamento, faz avaliação crítica da alta gastronomia e fala em abrir restaurante em novo formato ainda neste ano

Sementes de quiabo, ou caviar nas mãos de Roberta Sudbrack, em evento em Goiás. Foto: André Dusek|EstadãoFoto: André Dusek|Estadão

A chef gaúcha Roberta Sudbrack, que até o dia 30 de dezembro tocava o restaurante que leva seu nome por 12 anos no Rio de Janeiro, desabafa após o fechamento da casa: os excessos da alta gastronomia a cansaram. Em entrevista ao Paladar, ela conta que não vai “cuspir no prato” em que comeu nem jogar a culpa só na crise econômica. 

Admite que o formato da alta gastronomia foi necessário décadas atrás para a construção da linguagem da moderna cozinha brasileira, mas a cansou. “Foi uma decisão pessoal, muito íntima. Acredito que sempre vai haver espaço para esse tipo de restaurante e que bom que seja assim.”

Mas, durante uma espécie de momento sabático, ela ordena novas ideias e adianta que quer abrir um restaurante novo ainda neste ano. Que ninguém espere por nada do que foi o Roberta Sudbrack. “Quero uma forma que seja mais livre, ofereça mais acesso e traga mais alegria. Toda a minha decisão foi baseada nessas premissas.” 

Confira a seguir a entrevista completa com a chef.

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Sementes de quiabo, ou caviar nas mãos de Roberta Sudbrack, em evento em Goiás Foto: André Dusek|Estadão

Mais do que uma crise financeira, você acha que a alta gastronomia no País e no mundo sofre a sua crise também? Vimos nos últimos anos restaurantes como o Eleven Madison Park reduzir a quantidade de etapas do menu-degustação e aumentar a quantidade de comida no prato como sinal de estafa desse modelo de negócio.

Eu acho que a linguagem vem se esgotando. Não digo que morrerá porque é uma forma, entre tantas possíveis na linguagem da gastronomia. Há mais de 20 anos, quando eu e os chefs da minha geração começamos a semear as sementes e arar o solo para a construção de uma nova linguagem na cozinha brasileira, era necessário impor uma forma que prendesse a atenção. 

Era tudo muito ousado, muito novo, quase utópico. Captar a atenção do público para o que estava acontecendo era fundamental. E o menu-degustação cumpriu muito bem esse papel, nos ajudou a firmar essa linguagem através da forma. O RS (restaurante Roberta Sudbrack) foi o primeiro restaurante do Brasil a só servir menu-degustação. Em 12 anos, nós jamais mudamos a fórmula porque acreditávamos nela. Ela foi fundamental, mas não sei se é mais. É para refletir...

Acha que o perfil da clientela também mudou? As pessoas estão atrás de um serviço mais descontraído? Ou até atrás de menos quantidade de comida numa só refeição?

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Acho que o mundo mudou, eu mudei, a cozinha mudou e os cozinheiros mudaram. Hoje em dia, se estou num congresso internacional e a programação inclui ida a restaurantes muito ritualísticos ou que exigem que eu me vista demais, eu fujo. E muitos colegas que conheço também. Eu jamais vou cuspir no prato em que comi, tenho certeza de que esse ritualismo, esse modelo e essa forma foram fundamentais para a assimilação e introdução da linguagem da moderna cozinha brasileira. Mas acredito que o excesso saturou. 

Excesso de informação, excesso de cursos num jantar, excesso de louças, excesso de explicações, tudo isso cansou um pouco. Assim como o excesso de prêmios, de listas, de estrelas. Tudo ficou demais. Veja, se lá no início foi preciso criar uma forma que nos ajudasse a manter o foco do público no que estávamos fazendo, hoje, com tanta informação e demanda, quem perdeu o foco do que estava fazendo fomos nós! 

Temos que ser inteligentes nesse momento para encontrar uma fórmula que nos permita seguir construindo a identidade e a linguagem da moderna cozinha brasileira de uma maneira mais confortável. Não estou dizendo que vai ser fácil, mas eu resolvi tentar porque não acreditava mais em muita coisa.

Roberta em seu restaurante, no Rio Foto: Leonardo Wen|Estadão

Quando você pensa na senhora do Leblon que a parou anos atrás para falar que não podia pagar para comer no seu restaurante, existe por trás uma autocrítica sobre o alto valor que se paga para se comer em casas de alta gastronomia? Ou acha que sempre vai haver espaço para esse tipo de refeição e de cliente?

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Veja, não é uma questão de fazer milagres. Se fosse, estava fácil porque na minha cozinha tenho um altar com mais 100 santos de plantão! Na alta gastronomia, a forma e o conteúdo são caríssimos. A forma é pesada, é custosa, é excessiva até. Isso sem falar das cargas tributárias e da falta de incentivos para o setor aqui no Brasil, o contrário do que acontece em muitos países. O conteúdo também. 

Eu sempre digo que um tomate plantado e colhido com todos os cuidados, sem agrotóxicos, por alguém cujo nome você conhece e que leva esse tomate nas mãos até a sua cozinha, vai ser melhor e custar mais caro do que um tomate que você compra no supermercado na promoção. Trazer uma farinha de milho incrível, moída num moinho caseiro no interior do país, custa muitas vezes muito mais caro do que comprar a melhor polenta italiana. 

Então, sob esse aspecto não há milagre, é o ônus que se paga para estar nesse tipo de negócio. A opção pela alta gastronomia é cruel. Eu tinha quase 30 funcionários para atender 40 pessoas por noite. Fora todos os outros custos, coisas que para se manter nessa categoria é impossível eliminar. Tudo isso pesa no final e nesse tipo de negócio é muito difícil pensar em lucros. Quando o negócio se paga já é um sucesso. 

Receita de Roberta com caviar de quiabo, mostrada em evento em Goiás Foto: André Dusek|Estadão

Por isso eu acho equivocada a ideia de julgar os preços sem separar o joio do trigo. Eu sempre me incomodava quando alguém fazia uma viagem ao exterior, comia um menu do dia, num bistrô simples de rua em Paris, com guardanapo de papel, sem carta de vinhos e com ingredientes de qualidade duvidosa, e depois fazia comparação de valores com os restaurantes de alta gastronomia no Brasil. Não é razoável. Eu rompi com a forma da alta gastronomia e com todos os excessos que ela me impunha, não com o conteúdo. 

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Não posso nem pensar em diminuir a qualidade na minha cozinha, deixar de trazer a farinha de milho da dona Virgínia lá de Amarantina, em Minas Gerais, seria impensável para a minha filosofia. É um raciocínio matemático, pesar a balança para o lado que te parece mais importante: Menos excesso = mais acesso. E isso, nesse momento, para mim me parece coerente, foi uma necessidade vital. 

Mas eu gosto de deixar bem claro que tudo isso foi uma decisão muito pessoal, muito íntima. E por isso mesmo eu acredito que, sim, sempre vai haver espaço para esse tipo de restaurante e que bom que seja assim, um país precisa desta diversidade. Imagina que tristeza pensar em não ter um restaurante como o Fasano, o D.O.M., o Maní, o Olympe, o Cipriani no Brasil?

Comida de rua e receitas populares não significam descuido na escolha dos ingredientes e no seu preparo. Mas há ainda confusão por parte de clientes, que acham isso uma forma menor de gastronomia?

Há uma grande confusão! O que sempre me encantou na linguagem do street food no mundo foi justamente a preocupação com a origem, a qualidade e o artesanato. Uma das premissas do street food sério no mundo é a proximidade com o fornecedor, a qualidade e a pureza dos ingredientes. É uma maneira mais descontraída de fazer uma grande cozinha, mas nem por isso menos onerosa. Mais uma vez não há milagres! 

Todos os ingredientes que eu uso no Da Roberta ou no Sudtruck são produtos de altíssima qualidade, alguns deles produzidos só pra gente por pequenos artesãos de todas as partes do Brasil. Muitas vezes fazer chegar esses produtos aqui é caríssimo. Mas dá um orgulho imenso poder fazer um tipo de cozinha tão mais descontraída, com tanta qualidade e história. Cada sanduíche que servimos ali traz com ele uma história de vida de algum artesão brasileiro. Isso é lindo! E me deixa realizada como cozinheira.

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Salão do restaurante Roberta Sudbrack, que funcionou quase 12 anos até dezembro passado Foto: Leonardo Wen|Estadão

Como você se vê como cozinheira daqui para frente, seja fazendo hot dog ou caviar de quiabo? A pesquisa com receitas e ingredientes brasileiros continuará sendo seu foco? Ou quer explorar novos territórios?

Com certeza no conteúdo vai continuar igual! Minha filosofia e minha busca pela identidade e qualidade máxima não vão mudar em nada. Seja na linguagem street ou na linguagem da minha cozinha. Eu sempre digo e continuarei dizendo: o meu mise en place não começa na cozinha, começa no quintal do meu produtor. 

O RS há 12 anos propôs algo altamente ousado e, naquela época, incompreensível para o público: mudar o menu todos os dias para manter o respeito máximo à natureza. Ninguém tinha feito isso ainda no Brasil. Foi muito difícil fazer as pessoas entenderem os porquês disso. Esse respeito ao produtor e à natureza vai comigo vida afora.

O que muda é só a forma. Eliminar os excessos que eu também não aguento mais. Me liberar das listas, das estrelas, de uma competição em que eu nunca acreditei. E com isso eu espero conquistar mais liberdade para explorar novas fronteiras e até me impor novos desafios. A linguagem da alta gastronomia engessa um pouco, sobretudo hoje em dia. Acho que precisamos ter muito cuidado com o que está acontecendo. A pasteurização é um perigo. Acredito que está na hora de parar para pensar de novo. Dar um reset! Está tudo muito parecido, tudo muito igual. Os cozimentos, a linguagem, as formas. Isso é perigoso e pode colocar tudo isso que conquistamos com tanto suor a perder. 

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Roberta em foto tirada em 2001, quando era chef de cozinha do Palácio do Alvorada Foto: Veronica Campos|Estadão

Obviamente não estou generalizando, temos no Brasil cozinheiros com mentes e trabalhos incríveis, que mantêm a sua coerência e não se afastam da sua identidade. Isso é muito importante na construção de uma linguagem genuína para a nossa cozinha. Se você parar para pensar, quando houve o advento da cozinha tecnológica, da qual eu sou bastante crítica e nunca tive proximidade alguma, apesar de praticar uma cozinha muito moderna, todos nós paramos para pensar mais no que estávamos fazendo. 

Todo mundo se questionou, se perguntou: mas por que estou fazendo assim? Qual o sentido? Será que não dá para fazer melhor? Nós nos questionamos, nos enfrentamos internamente. Fomos buscar soluções inteligentes para tornar tudo mais interessante. Eu viajei o mundo inteiro explicando como transformei sementes de quiabo em caviar só utilizando a mente, as mãos e o fogo. Cada um de nós se reinventou porque aquele movimento mexeu com as estruturas da cozinha que estava acomodada. 

Nesse sentido eu tiro o meu chapéu para a cozinha tecnológica! Ela fez todo mundo se mexer, do seu jeito, mas ninguém ficou parado. Está na hora disso acontecer de novo. Está ficando tudo muito chato, não só a forma, o conteúdo também precisa ser repensado.

Lagostins com feijões em caldo, receita de Roberta Sudbrack Foto: Fabio Motta|Estadão

Você vai tirar um sabático da alta cozinha?

Aqui eu poderia te responder a pergunta sobre os preços cobrados num restaurante de alta gastronomia. Apesar de toda história que eu construí, de todo o caminho que eu trilhei, de todos os prêmios que eu ganhei e todo o respeito que conquistei não só no Brasil como no exterior, ainda não consegui comprar o meu apartamento! Não é hipocrisia. Nem caberia nesse momento da minha vida. Mas a verdade é que a minha geração arou toda a terra, semeou todas as sementes e correu o mundo levando a mensagem da cozinha brasileira, sem nenhum incentivo. 

O Alex Atala sempre diz isso e às vezes é incompreendido. É a pura verdade! Nós fizemos isso por amor e ideologia e muitas, mas muitas vezes mesmo, tiramos do nosso bolso para não deixar de levar essa mensagem adiante. Dito isso, seria maravilhoso para a minha mente e para o meu corpo, depois de tantos anos de devoção, dar uma parada. Mas não vai dar nem para respirar muito. Já estou colocando a água no fogo para ferver de novo.

Quais são os planos?

Há um plano, sim, de um novo restaurante para este ano. Que marcará justamente esta ruptura com a forma da alta gastronomia, dos menus longos. Mas o conteúdo seguirá a linha de trabalho e pesquisas que desenvolvo há anos.

Como vai ser a nova casa?

Não tenho essa resposta. Preciso de um tempo para respirar. Foram anos muito intensos trabalhando numa mesma forma e conteúdo. Há oportunidades e ideias que serão avaliadas no momento certo. A única coisa que eu sei é que quero uma forma que seja mais livre, ofereça mais acesso e traga mais alegria. Toda a minha decisão foi baseada nessas premissas.

Prato do RS com marshmallow, sagu e flores Foto: Leonardo Wen|Estadão

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