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Sob o gelo canadense, um tesouro de mexilhões

Repórter do 'New York Times' acompanha inuits em uma coleta de mexilhões dentro de cavernas de gelo

Inuits cavam buraco no gelo para coletar mexilhões durante a maré baixa. Foto: Aaron Vincent Elkaim/NYTFoto: Aaron Vincent Elkaim/NYT

The New York Times De Kangiqsujuaq, Quebec

Durante oito meses por ano, a baía em frente da aldeia de Kangiqsujuaq, no extremo norte da província de Quebec, congela, fazendo dos corvos e raposas raros sinais de vida, além dos inuits e seus cães. Durante o inverno, essa população caça focas e caribus e pesca através da camada de gelo.

Mas nos meses mais frios, quando o gelo fica mais grosso, alguns se aventuram em busca de mexilhões. A cada duas semanas, a atração da lua, combinada à geografia da região, cria marés excepcionalmente fortes; a água baixa quase 17 metros em alguns lugares, esvaziando a baía sob o gelo, ao longo da costa, durante uma hora ou mais. É então que alguns inuits montam em suas motos de neve e seguem para lá.

Recentemente, juntei-me a dois deles, Tiisi Qisiiq, de 51 anos, e Adami Alaku, de 61, que identificaram a área vazia e abriram um buraco no gelo.

Inuits cavam buraco no gelo para coletar mexilhões durante a maré baixa. Foto: Aaron Vincent Elkaim/NYT

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Lá embaixo há um mundo lindo e assustador, com um brilho azulado formado pela luz do sol. O som da água escorrendo enche o ar úmido e salgado. Nessa minha viagem recente, a temperatura era de -29º C, mas, sob o gelo estava bem amena: 0º C.

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Os homens desceram pelo buraco até o chão da baía. Ele todo estava coberto de algas, um ou outro caranguejo e amontoados de ovas comestíveis do peixe-escorpião, que os inuits chamam de "peixe feio". Mas Qisiiq e Alaku estavam ali atrás dos grandes mexilhões azuis que se agarram às rochas. Usando lâmpadas para iluminar o caminho, arrancavam os moluscos gelados com as mãos.

Em pouco tempo, os sons de estalos sinalizavam que a água estava voltando, levantando o gelo na baía. Logo, ela iria encher as cavernas. A maré é enganadora: volta lentamente até que começa a subir mais de 30 centímetros por minuto. Os homens saíram pelo buraco e para o ar frio.

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A primeira vez em que ouvi falar da coleta de mexilhão sob o gelo foi quando eu morava em Xangai e meu filho ganhou um livro infantil chamado Very Last First Time (A última primeira vez, em tradução livre), do escritor canadense Jan Andrews. Ele narra a história encantadora de uma garota inuit que vai sozinha para baixo do gelo pela primeira vez. Desde então, tenho vontade de fazer o mesmo. Fiz isso agora, e vi as maravilhas do chão da baía que surgiram na superfície.

Os desenhos do livro retratam um espaço colorido e cavernoso sob o gelo, muito diferente do lugar estreito e apertado que descobri. Quanto mais frio o inverno, mais grosso e estável é o gelo e maior a área liberada pela maré.

O mentor do Qisiiq, Lukasi Nappaaluk, lembra-se de recolher mexilhões na infância em cavernas com seis metros de altura, mas o aquecimento global está deixando o gelo menos previsível e mais propenso à deformação. As correntes de água quente o derretem por baixo, fazendo a travessia com a moto de neve cada vez mais perigosa.

Os mexilhões são uma iguaria de inverno apreciada hoje em dia, mas já foram uma fonte de alimento que salvava vidas durante os meses de congelamento. A carne crua, com sua abundância de vitaminas, permitiu que os inuits vivessem por séculos com uma dieta quase que totalmente desprovida de frutas e legumes. A única etapa de preparo dos mexilhões é a retirada de sua barba – fios de proteína que prendem as conchas às rochas – e uma lavagem.

Tiisi Qisiiq e sua esposa, Siasi, comem os mexilhões, nutritivos, crus, apenas lavados e limpos. Foto: Aaron Vincent Elkaim/NYT

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Os inuits ainda comem muita "comida da terra": caribu, foca, baleia e peixes que preferem devorar cru enquanto se sentam no chão.

Os mexilhões não são uma exceção: Qisiiq e sua esposa, Siasi Qisiiq, abriam os bivalves usando a borda de uma concha, raspando a carne de dentro e espremendo-a na mão, para tirar a água do mar, antes de comê-los crus mesmo.

Siasi Qisiiq cozinhou alguns para mim. Estavam saborosos e carnudos, salgados sem nenhum tempero e cozidos no vapor – calorzinho bom depois de passar horas ao ar livre. Comi também alguns dos mexilhões crus, ainda congelados. Tinham o mesmo gosto de ostras cruas, mas com um final amargo. Prefiro os meus à marinara.

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