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Tentações da carne

Por Dias Lopes

Tentações da carneFoto:

Na Quaresma – período de 40 dias que começa na Quarta-Feira de Cinzas e termina às vésperas da Páscoa, festa da ressurreição de Jesus Cristo – os fiéis católicos e ortodoxos se submetem ao jejum e à abstinência de carne, sobretudo na Sexta-Feira Santa. O jejum quaresmal já foi mais rigoroso. No passado, limitava-se a uma refeição por dia, à base de verduras, legumes, frutas, pão, azeite e água. A comida era servida quando o sol se punha e eliminava a carne. Com o passar do tempo, a penitência ficou mais rigorosa.

Os dias de abstinência de carne passaram a ser diferenciados dos de jejum. Além disso, a exclusão desse alimento ultrapassou a Quaresma. Os dias sem carne ocupavam quase a metade do ano. Eram três na semana, ou seja, quarta-feira, sexta-feira e sábado. Segundo católicos e ortodoxos, a privação do consumo de carne faz que eles se sintam mais unidos a Jesus. Portanto, a penitência se relaciona com o corpo de Cristo.

Começo. Missa do primeiro domingo da Quaresma na catedral do Rio. FOTO: Ricardo Moraes/Reuters

O médico, especialista em alimentação e ensaísta gastronômico espanhol L. Jacinto García, no livro Comer como Dios Manda (Barcelona, 1999), sustenta que esse comportamento se originou em tempos pré-cristãos. Uma das mais antigas crenças da humanidade consiste em acreditar que o alimento nos transmite não só propriedades nutritivas como também qualidades espirituais. “De acordo com esse princípio, a carne é capaz de gerar vigor e força em quem come; pelo contrário, o peixe nos traz frialdade e temperança, enquanto os vegetais provocam passividade e mansidão”, diz Jacinto García.

O homem medieval pensava assim. Julgava que a carne lhe transmitia força, coragem e fogosidade assemelhadas à natureza animal. Jacinto García acrescenta que só outro alimento rivalizava com ela na sua capacidade de também exaltar o desejo sexual: o vinho.

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São Bernardo (1090–1153), organizador e propagador da Ordem Cisterciense, avalizou a convicção: “Abstenho-me do vinho porque nele se encontra a luxúria; abstenho-me de carnes porque (…) alimentam igualmente os vícios da carne”. Os atuais espíritas vão além. Seus médiuns evitam comer carne nos dias de sessão. Acreditam que a “energia vital do animal dificulta a comunicação entre os vivos e os mortos”.

Mas a carne não é o único alimento ao qual a humanidade creditou um “espírito”. O filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804–1872), autor da frase “o homem é aquilo que come”, atribuiu o fracasso da revolução popular de 1848 no seu país ao consumo excessivo de batatas. “O sangue da batata não é bom para fazer revoluções.”

Entretanto, poucas pessoas demonstraram maior receio ao “espírito” de um alimento do que Filipe III (1578–1621), rei de Espanha e de Portugal (como Filipe II). Foram tantas as cautelas tomadas nas negociações pré-nupciais de sua filha, a infanta católica Maria Ana de Áustria, prometida em casamento ao protestante príncipe de Gales, futuro Carlos I, rei da Inglaterra e Escócia, que as bodas acabaram malogradas. Primeiro, Filipe III exigiu que o noivo renunciasse à religião anglicana. Depois, que os futuros filhos de Maria Ana de Áustria tivessem amas de leite católicas. Uma ama de leite protestante poderia transmitir aos netos de Filipe III a própria fé religiosa. Simplesmente dando de mamar.

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