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Comida

Voltar para casa é comer carne de panela

Como em muitas regiões do mundo, no nordeste dos Estados Unidos, carne de panela tem sabor e aroma de comida caseira. Um chef de Mineápolis revisita o prato, com influências de grandes chefs e de sua avó

A carne de panela de Gavin Kaysen sofreu a influência tanto do chef Daniel Boulud, seu mentor, como de Dorothy Kaysen, sua avó. Foto: Angela Jimenez|NYTFoto: Angela Jimenez|NYT

The New York Times De Mineápolis, Minnesota (EUA) 

A carne assada foi um dos primeiros pratos que o chef Gavin Kaysen aprendeu a preparar, se é que dá para chamar assim. Adolescente ainda, quando vivia em Bloomington, Minnesota, usou uma receita que não exigia nenhum conhecimento culinário. "Coloquei tudo na panela de cozimento lento", conta Kaysen, rindo e fazendo os gestos de desempacotar e jogar cubinhos de caldo de carne na panela. Ele acabara de colocar uma versão um pouco mais elaborada do prato no forno da cozinha aberta do Spoon & Stable (211 N 1st St, Minneapolis), restaurante que abriu aqui no fim de 2014, aguardado com ansiedade pelo público. "Não vejo a hora de provar o molho", confessa.

A carne de panela de Gavin Kaysen sofreu a influência tanto do chef Daniel Boulud, seu mentor, como de Dorothy Kaysen, sua avó. Foto: Angela Jimenez|NYT

No nordeste dos EUA, o que se prepara é carne assada versão "yankee" - o brisket (carne de peito) à moda judaica e o daube de carne de New Orleans são nomes diferentes para a mesma receita. Mas, para a maioria que nasceu nos confins do país, a delícia tem o sabor e o aroma da comida caseira. Preparado basicamente com um pedaço grande de carne (acém é o mais comum), cebola, batata, cenoura e líquido de cozimento, o prato está longe de ser uma opção de alta gastronomia. Kaysen o resume simplesmente como "carne com batata". "Era o meu prato favorito na infância", conta. Por ter sido criado em Twin Cities (região metropolitana de Mineápolis-St. Paul), também desenvolvi um carinho especial pela carne, mas nunca lhe dei muita importância – até pouco tempo, quando Kaysen me chamou a atenção para ela. Desde nosso encontro, no finzinho do ano passado, testei meia dúzia de versões diferentes e os resultados me convenceram que deveria ter sido redescoberta pelo público há mais tempo. Ela tem as mesmas virtudes daquelas receitas já aprovadas por chefs ambiciosos: envolve um corte de textura semelhante aos mais duros que os profissionais adoram cozinhar até desmanchar, e os legumes, apesar de manterem a forma, ficam mais macios do que se fossem transformados em purê.

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Em vez do acém, o corte mais usado na versão familiar, Kaysen usa o ombro. Foto: Angela Jimenez|NYT

A consistência do caldo depende da receita. Se não pede farinha de trigo, resulta em uma versão mais rala, tipo consommé; se sim, se transforma em algo entre um molho grosso e o demi-glace.

E é esse líquido que conquista tantos fãs. O sabor é revigorante, semelhante ao fascínio atual com o caldo de osso, e uma das razões por que Kaysen gosta de oferecê-lo especialmente no início do ano (inverno no Hemisfério Norte), quando a hospitalidade do Meio-Oeste se resume "ao ato de reunir as pessoas porque lá fora está tudo congelado". Entretanto, sua intenção inicial, ao voltar para casa depois de ter cozinhado no mundo todo, não era preparar carne de panela - pelo menos não para pagantes. As primeiras versões do cardápio do Spoon & Stable mostravam referências claras à região: bisão canadense, coalho no creme de espinafre, salmão curado em endro. A princípio, ela não entrou na lista porque Kaysen temia que um prato comumente associado com panelas de cozimento lento e cubos de caldo afetaria a sua aceitação local. "Eu não queria que o pessoal pensasse, tipo 'Ah, o cara vem de Nova York, já trabalhou no mundo todo e vai fazer só o que acha que a gente gosta, ou seja, carne de panela'", admite ele. Aqui cabe um pequeno parêntese para explicar sua ansiedade: Kaysen saiu de Minnesota para estudar culinária aos vinte anos. Seu fascínio pela carne está ligado à previsibilidade da comida de conforto e à facilidade do preparo. Jovem, ele saiu em busca de aventuras – e foi o que viveu, além de trabalhar na cozinha de restaurantes respeitados na Suíça, Londres e Califórnia e, mais tarde, sob a proteção de Daniel Boulud em Nova York.

Versão sofisticada de um prato sempre reconfortante: no Spoon & Stable, a carne de panela leva cogumelos chanterelle, purê de batata e mandioquinha cozida no leite. Foto: Angela Jimenez|NYT

Quando Kaysen, hoje com 36 anos, voltou para Twin Cities, em 2014, era um talento com um dos currículos culinários mais impressionantes a se estabelecer na cidade natal. A expectativa antecipada pelo Spoon & Stable foi reforçada pela sua experiência de sete anos no comando do Café Boulud e seu sucesso, como participante e técnico, no Bocuse d'Or, competição da culinária francesa que ganhou o nome do lendário Paul Bocuse. As conquistas que lhe pareciam garantir o sucesso em um mercado relativamente pequeno foram as mesmas que o paralisaram. Kaysen temia que a empolgação com seu retorno pudesse afastar uma população reconhecidamente modesta que prefere evitar o excepcionalismo da Costa Leste. "Fiquei com medo que o pessoal se ofendesse, mas todo mundo ficou maluco", comemora. Por capricho, Kaysen incluiu uma versão da carne assada da avó no cardápio pré-inauguração do Spoon & Stable, que lá ficou durante quase todo o inverno. Passei lá para provar quando fui fazer uma visita à família, logo depois da inauguração grandiosa – e fiquei tão maravilhado quanto os clientes que o transformaram em uma das maiores atrações da casa. A versão do chef é bem diferente daquela que minha mãe prepara, pois visa agradar a clientela sofisticada. Os acompanhamentos – cogumelos chanterelle, purê de batata, mandioquinha cozinha no leite e refogada – sofreram a influência tanto de Boulud, seu mentor, como de Dorothy Kaysen, sua avó.

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Carne de panela tem sabor e aroma de comida caseira. Aqui, o chef Kaysen segura o livro de receitas de sua avó, Dorothy. Foto: Angela Jimenez|NYT

Senti falta de poder amassar e comer os legumes macios e nada glamourosos da versão caseira (Kaysen disse que os reserva para os funcionários), mas o molho estava aveludado e perfumado com alecrim e a carne, macia a ponto de desmanchar. Em vez do acém, o corte mais usado na versão familiar, Kaysen optou pelo ombro, muito saboroso, que os franceses chamam de paleron e os açougueiros daqui, de flat iron roast. "É fantástico porque tem um tendão que passa bem no meio. Se cozinhar bem, ele fica molinho, parecendo tutano". Seu rosto parecia brilhar com a ideia. "No Café Boulud, a gente só fazia pot-au-feu com paleron." A posição de destaque do prato no cardápio do Spoon & Stable lhe dá o prestígio que merece, assim como o caso de amor agora explícito de Kaysen com ele. Com um pouco de sorte, sua iniciativa estimulará outros chefs a reforçar a renascença do quitute. "Às vezes basta um lugar abrir, alguma coisa acontecer, para o povo descobrir aquilo de que sentia falta e nem sabia", conclui ele.

Se você não está pela região das Twin Cities e ainda quer sentir o aroma de uma boa carne de panela perfumar sua casa, tente esta versão em casa, com acém, cenouras, cebolas e cogumelos. O prato é reconfortante e rico em sabor - e vai muito bem com um cabernet sauvignon. 

  Foto: Angela Jimenez|NYT

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