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Restaurantes e Bares

Cozinhando com a faca no pescoço

Tensão, gritaria, punições, são parte da rotina que chega a 16 horas de trabalho diário em sofisticadas cozinhas de todo o mundo. Um jovem chef dinamarquês que atuava na China, encontrado morto, pode não ter suportado o baque

Cozinhando com a faca no pescoçoFoto:

A morte de Martin Bentzen, um jovem cozinheiro dinamarquês de 32 anos na semana passada, reacendeu o debate sobre a pressão em cozinhas profissionais. Bentzen – que atuava em um projeto na China, mas já havia trabalhado no Noma, melhor restaurante do mundo no ranking da revista Restaurant – foi encontrado morto em casa. A causa da morte está endo investigada, mas o estresse na cozinha parece ter sido o motivo. No fim do ano passado, um grupo de chefs franceses assinou um manifesto em repúdio ao assédio moral e físico que ainda é frequente em restaurantes. Em casos isolados, foram relatadas agressões e queimaduras, como registrou a agência de notícias France Presse.

A tensão em cozinhas sofisticadas não é novidade. Mas cenas caricaturais como pratos voando ou garrafas sendo quebradas no chão estão ficando cada vez mais raras.

“No Daniel, o chef pegou uma manga madura e enfiou na minha boca com casca, caroço e tudo e me mandou dar uma volta”, diz Thomas Troisgros, do Olympe

“Vi panelas voarem nos anos 1980. Naquela época a cozinha era mais estressante. Equipamentos como máquina de cozimento a vácuo não existiam, tudo era feito à mão, era mais cansativo e difícil”, conta Pascal Valero, responsável pelo NB Steak, que já passou pelo Le Louis XV, três estrelas Michelin de Alain Ducasse em Mônaco.

Mesmo com certo avanço, chefs brasileiros viveram situações incômodas em casas estreladas no exterior. É o caso de Thomas Troisgros, que ao lado do pai, Claude, comanda o Olympe, no Rio de Janeiro, e os CT Brasserie e CT Boucherie.

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Durante um estágio no restaurante Daniel, de Daniel Boulud, em Nova York, Thomas usou uma manga ligeiramente verde numa receita. O chef enfiou outra manga, inteira, na boca dele, com casca e caroço. “Vocês não sabem o que é uma manga madura no Brasil?”, ouviu Thomas de seu superior. Naquela noite, foi afastado do serviço da casa. Não guardou rancor, diz. “Hoje sou amigo do cara”, garante.

No Alinea, o três estrelas Michelin do chef Grant Achatz em Chicago, o clima é de rigidez e os atrasos não são tolerados, conta a curitibana Manu Buffara, do Manu, em Curitiba. Ela entrou na casa como estagiária e saiu cinco meses depois como chef responsável pela praça de aperitivos. Manu se lembra de uma vez em que alguém chegou cinco minutos atrasado e foi dispensado. Em outra ocasião a equipe foi punida porque alguém esqueceu um recipiente de plástico perto do fogão, que derreteu. “O chef fez toda a equipe ficar na cozinha até 4 da manhã”, conta.

Tensão e gritaria faziam parte da rotina diária (de 16 horas em média) de Rafael Protti, chef confeiteiro do Tuju, nos quatro anos em que trabalhou em casas do francês Joël Robuchon, apelidado de Chef dos Chefs do século 20.

No L’Atelier Saint-Germain reinava o “estilo de perfeição de Robuchon”, conta Protti. “Você é testado até chegar a seu limite. Mas é claro que parte disso é uma certa ironia francesa que é preciso relevar”, diz o confeiteiro, que também trabalhou com Pierre Hermé. A sua maneira, o confeiteiro brasileiro se impõe no Tuju, onde está hoje. “Outro dia um funcionário me chamou de mano. E eu disse: aqui as pessoas atendem pelo nome. Um restaurante precisa ter rigor.”.

Antes de maltratar cozinheiros diante das câmaras, o inglês Gordon Ramsay, dono de um império de 22 restaurantes e apresentador de Hell’s Kitchen também passou aperto. É célebre o episódio em que o francês Joël Robuchon atirou-lhe ravióli quente na cara. “Baixei a cabeça e continuei trabalhando. Precisava ficar ali, aprendendo”, ele não se cansa de contar.

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Horizonte. Cobrança por excelência sempre vai existir na cozinha, diz o chef Alberto Landgraf, do Epice. “Tem que ter padrão de execução e ritmo. Em dez minutos podem chegar 60 pessoas que querem comer bem e sem demora.”

Jefferson Rueda, do Attimo,que também tem fama de durão, justifica a rigidez. “O cara vai no restaurante e gasta R$ 200 numa refeição. Então, tem que ser impecável. É um nível de cobrança muito alto.” Há quem tente práticas para minimizar o estresse da produção diária. No Lasai, Rafael Costa e Silva faz reuniões antes de o serviço começar. “No calor da cozinha é impossível conversar”, diz o chef, que por sete anos trabalhou no Mugaritz, no País Basco Espanhol.

Conversa não é unanimidade nas cozinhas. “Trabalhei em alguns restaurantes em que não podia ter opinião, como o Daniel”, diz Thomas Troisgros. De bonzinho, o francês Boulud, que construiu um império de 13 restaurantes nos EUA, não tem nada. Além de gritos, há diversos episódios agressivos conhecidos, como quando o chef atirou uma lagosta num cozinheiro que errara o ponto. Em algumas cozinhas, isso começa a mudar. “Antigamente você só trabalhava, não tinha a opção de falar”, diz Rueda. “É burrice. Nós criamos as receitas, mas o funcionário que executa o prato pode ter uma luz de como fazer aquilo melhor.”

>>Veja a íntegra da edição do Paladar de 12/3/2015

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