São Paulo devora seus filhos feito Saturno. Nesta cidade que vive numa permanente relação complicada com o passado, porque cultiva muito mal sua memória, são poucos os restaurantes que escapam à glutonice voraz da metrópole, do mercado imobiliário. A grana aqui ergue e destrói coisas belas – com larga folga para destrói ante ergue.
O Presidente, na fronteira do Brás com a Mooca desde 1962, resiste bravamente. Não é pouco. O restaurante sobrevive servindo apenas uma coisa: bacalhau – na forma de bolinhos, grelhado, à dorê, cozido, desfiado, no forno. Funciona só na hora do almoço, de terça a domingo, das 11h às 16h. Não tem filiais, os donos estão sempre na casa, os garçons de gravata borboleta têm décadas de experiência. E obviamente não tem uma conta no Instagram.

Confesso que o restaurante não está no meu escaninho gastronômico afetivo. Mas está no de muito paulistano, como a editora deste Paladar, que me recomendou ver como andava o Presidente. Fui, temendo o pior. Porque o problema das memórias é que elas são somente nossas. Ficam lá guardadas, fermentando, ao abrigo da luz branca da realidade. Aí, quando a gente revisita as memórias, doces e inventadas, mais se decepciona do que se compraz.
Feliz surpresa: o Presidente passa fácil no teste do tempo. A comida que serve é de alto nível. A maior proeza do Presidente, portanto, não é só continuar servindo o que sempre serviu, no lugar onde sempre esteve. É fazer isso sem deixar a qualidade cair.
O bacalhau grelhado, o prato mais pedido da casa, é muito delicado. Tem uma fina crosta crocante e dourada. Você a rompe e vai desmanchando o peixe em lascas grossas, de um branco imaculado, acetinadas. O Gadus morhua, que vem da Noruega e é escolhido pessoalmente por seu Manoel Teixeira, é bem dessalgado. O tempo que passa na água para isso e os macetes do preparo não são revelados nem para o Lopes, garçom com 30 anos de Presidente. “Tem uma grade trancada lá atrás na cozinha”, diz o atendente. Ao lado da posta alta do peixe vêm brócolis de intenso verde escuro – não o ninja aguado –, saboroso, crocante, e batatas coradas amidosas e amanteigadas. É peixe, alho e óleo, brócolis e batata: só – e basta.

A casa serve ainda o bacalhau à dorê, à portuguesa, à parmegiana, à espanhola, à Dom Manuel e o à Presidente (este, desfiado em camadas na panela de barro, tem de ser encomendado com antecedência, para ao menos três pessoas). É tudo feito com simplicidade. E surpreende por passar longe da carregação que muitas vezes assombra restaurantes antigos, tradicionais. Os acompanhamentos têm bom ponto de cozimento, o peixe não é nunca afogado em tempero exagerado. E tem o bolinho de bacalhau de entrada. Frito à perfeição. Eu seria feliz se comesse dois deles todo dia antes do almoço.
De fora, não se dá nada pelo restaurante. Tem fachada banal, de azulejos de banheiro, um letreiro de plástico escrito “Restaurante Presidente”. Lá dentro, paredes creme, piso de granito cinza, pouca luz natural e um bar tipo ilha com lâmpadas frias espetadas do teto logo na entrada. É o clima anti-Pinheiros contemporâneo.
Vida ainda mais longa ao Presidente. Ah, não se esqueça: a casa não aceita cartão e os preços não são baixos. A porção para um dá para dois, ainda mais se você pedir bolinhos de bacalhau antes.

CONTEXTO
O Presidente foi fundado em 1962, no Brás, na Visconde de Parnaíba. A grande mudança em todo esse tempo de existência foi ter, no fim dos anos 1990, pulado uns metros à frente: saiu do número 2.424 e foi para o 2.438. A casa é tocada desde a sua inauguração pela família Teixeira, que veio de Portugal ao Brasil nos anos 1950.
O MELHOR E O PIOR
PROVE
O bolinho de bacalhau. Um primor: mais peixe que batata, frito na hora, suave, de bom tamanho.
O bacalhau grelhado. É o mais pedido da casa não sem motivo – é grelhado só no azeite, o que cria uma fina crosta crocante.
O bacalhau à portuguesa. Gloriosa simplicidade: cozido na água com sal, vem numa alta posta brilhante, com ovo cozido, brócolis, batata e azeitona.
EVITE
Os doces. Eles são oferecidos num simpático carrinho, que chega à mesa à moda antiga, mas o problema é que eles próprios são antigos – não são feitos na casa, falta-lhes frescor.
Evite, mesmo, levar só cartão de crédito ou débito. Não é demais lembrar: a casa só aceita dinheiro ou cheque – costume fora de moda, também trazido de outros tempos.

Estilo de cozinha: português abrasileirado, gira em torno apenas do bacalhau.
Bom para: almoço ou jantar em mesas maiores, os pratos são para dividir, com família ou amigos.
Acústica: a rádio Alpha FM rola solta, num volume razoável; com o salão cheio, o ambiente fica ruidoso.
Vinho: oferta razoável de portugueses, verdes e “maduros”, a preços salgados. Tem vinho da casa a R$ 10 a taça, para quem gosta de riscos. Taxa de rolha: R$ 30.
Cerveja: a revolução cervejeira não chegou aqui – e talvez nunca chegue ou precise chegar. Só tem Brahma, Original e Bohemia em garrafa de 600 ml a R$ 14.
Água e café: junto com o pão com manteiga cortesia da casa poderia vir uma jarra d’água. Mas não, só tem garrafinha de 500 ml a R$ 5. Segue a campanha pela popularização do cortês gesto. O expresso é Lavazza (R$ 4).
Preços: entradas (R$ 4 a R$ 28), pratos principais (R$ 118 a R$ 459 – porções de bacalhau para até cinco pessoas), sobremesas (R$ 10 a R$ 12).
Vou voltar? Sim, vou. Pelo bolinho, pelo bacalhau grelhado, pelo programa.
SERVIÇO
Presidente R. Visconde de Parnaíba, 2.438, Brás Tel.: 2292-8683 Funcionamento: 11h/16h (fecha seg.) Atenção: não aceita nenhum cartão (nem crédito nem débito) Não tem serviço de valet Não tem paraciclo